Na nossa ordem jurídica as declarações de inconstitucionalidade por ação têm força obrigatória geral (nº 1 do art.º 282º da CRP), da qual decorre uma eficácia repressiva com efeitos retroativos que elimina atos e contratos praticados à sombra da norma inválida, devendo salvaguardar-se dessa eficácia destrutiva o caso julgado (nº 3 do art.º 281º da CRP) e o ato administrativo “firme” ou “inimpugnável” (Ac. nº 786/96 do TC).
Contudo, a norma do nº 4 do mesmo artigo admite a restrição temporal dos efeitos retroativos da declaração de inconstitucionalidade, permitindo a salvaguarda de situações consolidadas no passado, por razões de segurança jurídica, equidade e de interesse público de excecional relevo. Essa restrição pode, alternativamente, tornar imunes à nulidade: i)todos os atos praticados ao abrigo da norma inconstitucional; ii) apenas os atos praticados durante um determinado período de tempo; iii) ou, unicamente, certas categorias de atos ou de situações[1], contanto que não se ofenda ostensivamente o princípio da igualdade.
Questiona-se, contudo, no caso de ser proferida uma declaração de inconstitucionalidade com eficácia ex nunc, quais os correspondentes efeitos sobre processos pendentes nos tribunais ordinários e no próprio Tribunal Constitucional, em que particulares tenham previamente impugnado a mesma norma em controlo concreto incidental da inconstitucionalidade. Numa primeira sequência de decisões, até ao final da década de 80, o Tribunal Constitucional, quando ainda ensaiava o uso da modulação temporal de efeitos, não salvaguardava expressamente os processos judiciais pendentes[2] criando-se uma situação de incerteza nos tribunais (o Tribunal Constitucional dá razão ao particular no incidente de inconstitucionalidade mas manda aplicar no feito em julgamento a norma inconstitucional).
Mas, sensivelmente a partir da prolação do Ac. nº 246/90, o Tribunal Constitucional salvaguardou dos efeitos modulatórios ex nunc não só os processos pendentes, mas ainda os que fossem suscetíveis de recurso de constitucionalidade. A partir daí praticamente todas as declarações de inconstitucionalidade proferidas ao abrigo do nº 4 do art.º 282º da CRP garantem a retroatividade dos efeitos sancionatórios ex tunc da decisão para as situações pendentes[3].
A orientação do Tribunal na salvaguarda das pendências tem como fundamento, a garantia:
i) Do princípio do acesso ao Direito e à tutela jurisdicional efetiva(art.º 20º da CRP) ficando comprometida essa tutela se, para a defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, o cidadão recorrer aos tribunais da aplicação de uma norma inconstitucional e se confrontar com um “provimento fictício” que, no fundo, lhe dá razão mas lhe denega o exercício do direito;
ii) Do princípio da igualdade material (art.º 13º da CRP), pois deve ser tratado diferentemente quem não se conformou com a norma inconstitucional e recorreu aos tribunais para a defesa dos seus direitos, arcando com os custos pecuniários e temporais do processo, em relação a quem passivamente se conformou com a decisão, não reagindo;
iii) Do princípio da proteção de confiança, como dimensão subjetiva da segurança jurídica (art.º 2º da Constituição, que enuncia o princípio do Estado de direito democrático), dado que, do Ac. nº 188/2009 do TC resulta ser ilegítima uma restrição ao direito a uma tutela jurisdicional efetiva de um cidadão que: i) recorreu aos tribunais alimentado pela expectativa constitucionalmente fundada de estes salvaguardarem o seu interesse legítimo de não ser aplicada uma norma inconstitucional à sua esfera jurídica (nº 1 e 5 do art.º 20º, conjugado com art.º 204º da CRP); ii) o fez de boa-fé; iii) e realizou planos de vida através do recurso aos tribunais, realizando avultadas despesas processuais[4];
iv) O princípio do interesse processual em agir[5] junto dos tribunais por parte de um cidadão que suscita a inconstitucionalidade de uma norma em controlo concreto, interesse que é pressuposto do mesmo recurso e que seria posto em causa por uma decisão discricionária tomada em controlo abstrato restritiva de efeitos, a qual, dando juridicamente razão ao recorrente, lhe negasse ganho efetivo de causa, ficando comprometida toda a razão de ser e utilidade da interposição de recursos em controlo concreto.
É certo que o Tribunal Constitucional na última década tem refreado a prolação de acórdãos onde se restrinja temporalmente a eficácia das suas declarações em controlo abstrato sucessivo. É também certo que o mesmo Tribunal nessas situações têm uma prática constante de salvaguarda das pendências.
Julga-se, contudo, que se por lapso, o Tribunal Constitucional não determine expressamente essa salvaguarda, os particulares serão prejudicados por sentenças de provimento fictício. Daí que se defenda a inclusão dessa salvaguarda na Lei do Tribunal Constitucional.
Carlos Blanco de Morais
[1] Nesse sentido, GOMES CANOTILHO-VITAL MOREIRA “Constituição da República Portuguesa Anotada”, II, Coimbra, 2014, p. 979. Vide jurisprudência constitucional cobrindo estas três situações, RUI LANCEIRO, “A Manutenção de Efeitos da Declaração de Inconstitucionalidade com Força Obrigatória Geral à Luz do art.º 282º-4 da Constituição pelo Tribunal Constitucional” in AAVV “Estudos em Homenagem de Rui Moura Ramos”-I- Coimbra, 2016, p. 491 e seg..
[2] Veja-se, por exemplo o Acórdão nº 24/83 (taxa de comparticipação de utentes na aquisição de medicamentos).
[3] Cfr. por exemplo o caso, de entre outros, dos seguintes Acórdãos: Ac. nº 597/96 (concurso no serviço diplomático; Ac. nº 163/2000 (concurso interno na administração Pública); Ac. nº 96/2000 (taxa); Ac. nº 140/2002 (visto do Tribunal de Contas sobre atos de entes da administração indireta); Ac. nº 682/2005 (carreira de enfermagem); Ac. nº 325/2005 (estatuto remuneratório dos funcionários e agentes da Administração); Ac. nº 34/2006 (remissão obrigatória de pensões vitalícias); Ac. nº 551/2007 (regime de mobilidade de funcionários entre serviços); Ac. nº 239/2008 (concurso para polícia marítima); Ac. nº 494/2009 (imposto de rendimento sobre pessoas coletivas);.
[4] CARLOS BLANCO DE MORAIS “Justiça Constitucional II” Coimbra, 2011, p. 357 e seg.
[5] HUGO PEDRO CORREIA “Admissibilidade da Restrição de efeitos em Fiscalização Concreta” in AAVV “As Sentenças intermédias da Justiça Constitucional” – Coord. Carlos Blanco de Morais, Lisboa, 2009, p. 802.