Pelo acórdão n.º 524/2023, de 29 de agosto (Processo n.º 880/2023, sendo relator o Conselheiro Carlos Medeiros de Carvalho) veio o Tribunal Constitucional pronunciar-se pela não inconstitucionalidade das normas dos artigos 1.º, 2.º, 3.º e 4.º do Decreto da Assembleia da República n.º 77/XV, aprovado em 19 de julho de 2023 e recebido pelo Presidente da República para promulgação como lei em 9 de agosto de 2023 e que procedia, entre outros aspetos, à clarificação do regime sancionatório relativo à detenção de droga para consumo independentemente da quantidade.A 17 de agosto o Presidente da República viera requerer, ao abrigo do artigo 278.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa e dos artigos 51.º e 57.º, n.º 1, da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional – LTC), a apreciação da constitucionalidade das referidas normas em processo de fiscalização preventiva da constitucionalidade. Notificado para o efeito previsto no artigo 54.º da LTC, o Presidente da Assembleia da República ofereceu o merecimento dos autos.Como resulta da nota publicada no site da Presidência , “Sem prejuízo de reservas sobre uma questão de conteúdo, e na linha do entendimento que já vem dos tempos do Presidente Jorge Sampaio, considerando, agora, em particular, a especial incidência dos novos tipos de drogas nas Regiões Autónomas, o regime sancionatório nelas adotado e a regionalização dos serviços de saúde, fundamentais para a aplicação do novo diploma, o Presidente da República requereu hoje ao Tribunal Constitucional a fiscalização preventiva de constitucionalidade, por falta de consulta aos órgãos de governo próprio daquelas Regiões, do decreto da Assembleia da República que clarifica o regime sancionatório relativo à detenção de droga para consumo independentemente de quantidade e estabelece prazos regulares para a atualização das normas regulamentares, alterando o Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, e a Lei n.º 30/2000, de 29 de novembro.” (itálico nosso).O interessante sobre a referida decisão (sem votos de vencido) – para além da plena demonstração que o controlo de mérito enquanto fase do procedimento legislativo e, em concreto, os processos de fiscalização preventiva, correm em pleno mês de agosto – reside na fundamentação utilizada. Esta vai plenamente ao encontro daquela formulada pelo Presidente da República e baseia-se apenas numa questão de índole formal, isto é, de violação de regras constitucionais sobre o procedimento legislativo. Teria de ser assim?A questão de constitucionalidade colocada no pedido circunscreveu-se à violação do dever que recai sobre os órgãos de soberania de ouvir «relativamente às questões da sua competência respeitantes às regiões autónomas, os órgãos de governo regional», nos termos do n.º 2 do artigo 229.º da Constituição, estatuindo a alínea v) do n.º 1 do artigo 227.º da Lei Fundamental que as Regiões Autónomas têm o poder de se pronunciarem “por sua iniciativa ou sob consulta dos órgãos de soberania, sobre as questões da competência destes que lhes digam respeito, bem como, em matérias do seu interesse específico, na definição das posições do Estado Português no âmbito do processo de construção europeia”. Em concreto, o pedido invocou como fundamentação que a medida legislativa: i) tem «sérias implicações de saúde pública, com reconhecidas especificidades regionais»; ii) tendo uma «relevante dimensão administrativa, com reflexo na organização regional»; iii) sobre a qual existe «legislação regional em matéria contraordenacional» que imporá uma intervenção regional com vista à articulação entre regimes»; iv) implica a atualização de portarias que «não podem deixar de corresponder, no caso das Regiões Autónomas, a intervenções da Administração regional, como é designadamente o caso em matéria da saúde, cujas competências estão regionalizadas»; sem deixar de salientar, v) a aprovação do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, e da Lei n.º 30/2000, de 29 de novembro, foi precedida da audição dos órgãos de governo próprio das Regiões Autónomas. “ O thema decidendum delimitado pelo Tribunal centrou-se em saber se, atenta a matéria sobre que versavam as normas identificadas no pedido, se estaria perante uma questão da competência dos órgãos de soberania (cf., nomeadamente, os artigos 161.º, alínea c), e 165.º, n.º 1, alínea c), da Constituição), respeitante às regiões autónomas, na aceção dos referidos artigos.Assim, num aresto relevante para compreender o âmbito e alcance do dever de audição dos órgãos de governo próprio das Regiões Autónomas no quadro de um Estado unitário regional, o Tribunal Constitucional recordou que decorre dos referidos comandos que o dever de audição se exerce sobre «questões da competência dos órgãos de soberania que sejam respeitantes às regiões autónomas», estando o concreto regime procedimental disciplinador da audição dos órgãos de governo próprio das Regiões Autónomas regulado em sede de legislação ordinária, designadamente na Lei n.º 40/96, de 31 de agosto (na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 3/2021, de 22 de janeiro), em articulação com as normas aplicáveis dos Estatutos das Regiões Autónomas e com o artigo 142.º do Regimento da Assembleia da República n.º 1/2020, de 31 de agosto (regimento entretanto objeto de alteração pelo Regimento da Assembleia da República n.º 1/2023, de 9 de agosto).Fazendo um périplo pela jurisprudência do próprio TC (e da Comissão Constitucional) bem como pela doutrina mais representativa, para além de uma apreciação casuística sobre os atos legislativos mais relevantes que suscitaram a intervenção do Tribunal Constitucional sobre aquela questão, o Tribunal concluiu serem estes os critérios/indícios relevantes e determinantes na e para a verificação e preenchimento do requisito da «questão respeitante às regiões autónomas»:i) o âmbito territorial da medida regulatória de determinada questão ser de aplicação circunscrita apenas ao território de uma ou de ambas as Regiões Autónomas;ii) a medida regulatória que se propõe adotar para a questão corporizar uma solução especial para uma ou para ambas as Regiões Autónomas, e em função das particularidades/especificidades destas diversa da regulamentação geral que nessa matéria se prevê para o restante território nacional;iii) estarem em causa interesses que não são comparáveis com os que se fazem sentir noutras regiões do país, consideradas as características geográficas, económicas, sociais e culturais das regiões;iv) a medida regulatória gerar a imposição/injunção de deveres especiais de adoção, adaptação/revisão da legislação regional ou de atribuição de uma competência, no âmbito da atividade administrativa, a exercer nas Regiões Autónomas por entidades distintas das entidades que a exercem no restante território nacional ou que impliquem a criação/constituição e/ou a reestruturação dos serviços regionais.Conclui, portanto, que constitucionalmente as Regiões Autónomas só devem ser ouvidas em relação às matérias de âmbito regional, às matérias que tenham uma especial incidência ou predominância no seu território e quanto àquilo que são as suas características e particularidades de uma ou de ambas, não devendo, a contrario, sê-lo no que toca a matérias de âmbito nacional em relação às quais as mesmas estão em idênticas condições que qualquer outra parte do território nacional, não incidindo de forma particular e diferente daquela em que afeta o resto do País, razão pela qual não lhes assistirá direito de audição nos casos em que as mesmas sejam interessadas apenas e em idêntica medida ao que o é também o restante território nacional.Ora, após a análise do procedimento legislativo em concreto, concluiu que o principal propósito desta medida legislativa era o de, revertendo a orientação previamente fixada pela jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 8/2008, clarificar o regime jurídico que procedeu à descriminalização do consumo de drogas e de outras substâncias psicoativas. Por outras palavras, estava em causa uma opção de política criminal inserida numa estratégia nacional, constituindo um ato da competência de órgão de soberania (cf., nomeadamente, o artigo 161.º, alínea c), da Constituição) versa sobre matérias ou domínios de disciplina jurídica abrangidos na reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República (cf. alínea c) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição), que, pela sua natureza e pelo seu objeto, respeitam, por igual, a todo o País, sem diferenciação de parcelas ou regiões. Acresce que as normas do Decreto não estabelecem, elas mesmas, qualquer especificidade relativamente às Regiões Autónomas, estando-se em presença de um ato que visa operar uma regulação normativa que respeita, por igual, a todo o território nacional, sem enunciação de um qualquer particularismo ou especificidade de âmbito territorial limitadora ou de qualquer outra natureza que, no caso, resulte expresso, se extraia ou possa minimamente inferir.Embora realce que não se ignora que a insularidade pode colocar desafios acrescidos em matéria de prevenção e combate ao tráfico e consumo de drogas e outras substâncias psicoativas sem prescrição médica, nem que os dados recentes revelam assimetrias regionais de que ressalta uma maior prevalência de consumo atual e recente nas Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira, o que tornaria “indubitavelmente oportuna” a audição dos órgãos competentes das Regiões Autónomas, esclarece que não se pode confundir uma simples oportunidade de audição com o dever de audição constitucionalmente consagrado no n.º 2 do artigo 229.º da Constituição.Não existe também inequivocamente a necessária imposição da criação e/ou da reestruturação de serviços no quadro regional (os regimes, atribuições, funcionamento e estruturas não são minimamente modificados ou transformados na referida alteração legislativa), mantendo-se intocada a autonomia regional para adaptar essas estruturas organizativas às necessidades especialmente sentidas no seu território, caso venha a verificar-se necessário (já que não é introduzida qualquer alteração ao artigo 27.º da Lei n.º 30/2000, de 29 de novembro). Por outro lado, o presumível impacto da alteração legislativa será idêntico ao que se fará sentir em todo o território nacional. Também relativamente aos demais aspetos do diploma entendeu o Tribunal que não ressaltava qualquer especial incidência ou predominância no território e/ou naquilo que são as características e particularidades de uma ou de ambas as Regiões Autónomas.Conclui também o Tribunal que todas as razões apontadas pelo requerente confluem para tornar evidente que, se poderia ter sido oportuno proceder à audição das Regiões Autónomas durante o processo legislativo, à semelhança do que sucedeu nomeadamente com a versão originária do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, isso não permite sustentar que existia, à luz do disposto nos artigos 227.º, n.º 1, alínea v) e 229.º, n.º 2, da Constituição, uma exigência constitucional nesse sentido. Limitou-se portanto o Tribunal, como adiantado supra, a analisar a questão da constitucionalidade formal das referidas normas, tal como indicado no pedido do Presidente da República. Não houve qualquer invocação pelo Presidente de eventuais inconstitucionalidades materiais do decreto – embora a referida nota publicada no site da Presidência aponte, como visto, para “reservas sobre uma questão de conteúdo” – nem o Tribunal se debruçou sobre as mesmas, embora o pudesse fazer.Note-se que o artigo 51.º, n.º 1 e n.º 5 da LTC não impediam o Tribunal de ter apreciado a inconstitucionalidade material das normas sindicadas mesmo tendo sido apenas requerida a fiscalização das normas do ponto de vista formal. O Tribunal Constitucional está efetivamente vinculado ao pedido, mas não à causa de pedir (ou seja, aos princípios e normas-parâmetro invocadas no pedido para arguir a invalidade do ato). Isto significa que o facto de o Presidente da República ter invocado meramente questões de índole formal como vício (a referida preterição do dever de audição dos órgãos de governo próprio das Regiões Autónomas) não limitava os poderes de cognição do Tribunal, que poderia ter avançado por questões de índole mais substantiva e de conteúdo, geradoras de eventual inconstitucionalidade material das normas sindicadas. Em continuidade com uma linha de auto-contenção, o Tribunal não o fez e assim perdeu a oportunidade de afastar quaisquer outras dúvidas de constitucionalidade sobre o decreto. Tendo o mesmo sido entretanto promulgado – não sem uma chamada de atenção por parte do Presidente da República na nota publicada no site da Presidência (“não deixa de chamar a atenção para o facto de a Assembleia da República ter divergido do Governo no ponto sensível da definição da quantidade de droga detida por quem tenha de ser considerado mero consumidor ou efetivo traficante”) – foi entretanto já noticiado que alguns deputados à Assembleia da República teriam sido instados a requerer um processo de fiscalização sucessiva da constitucionalidade (recorde-se que a mesma pode ser requerida por um décimo dos deputados à Assembleia da República, ou seja, 23, nos termos da alínea f) do n.º 2 do artigo 281.º da Constituição). A ser assim, não poderá nessa altura o Tribunal furtar-se a uma análise substancial das mesmas.