A competência do Supremo Tribunal Administrativo para conhecer dos processos em matéria administrativa relativos a ações ou omissões dos órgãos superiores do Estado

A competência do Supremo Tribunal Administrativo para conhecer dos processos em matéria administrativa relativos a ações ou omissões dos órgãos superiores do Estado

1. O legislador atribui aos tribunais administrativos de círculo a competência para conhecer, em primeira instância, da generalidade dos processos no âmbito da jurisdição administrativa (cfr. nº 1 do artigo 44º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais).

Uma das exceções, em que a competência para o conhecimento, em primeira instância, dos processos em matéria administrativa está reservada para o Supremo Tribunal Administrativo, diz respeito a ações ou omissões de órgãos superiores do Estado.

Assim, nos termos da alínea a) do nº 1 do artigo 24º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, compete ao Supremo Tribunal Administrativo conhecer, em primeira instância, dos processos relativos a ações ou omissões do Presidente da República, da Assembleia da República e seu Presidente, do Conselho de Ministros, do Primeiro-Ministro, do Tribunal Constitucional, Supremo Tribunal Administrativo, Tribunal de Contas, Tribunais Centrais Administrativos, assim como dos respetivos Presidentes, do Conselho Superior de Defesa Nacional, do Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais e seu Presidente, do Procurador-Geral da República e do Conselho Superior do Ministério Público.

2. Muito recentemente, através de acórdão datado de 19 de outubro de 2023 (Processo nº 2614/23.1BELSB), o Supremo Tribunal Administrativo veio expressar o entendimento de que «Os princípios da eficiência e da garantia da tutela jurisdicional efetiva dos cocontratantes das entidades adjudicantes, aliados aos objetivos a alcançar com a natureza urgente do contencioso pré-contratual, balanceados com a interpretação de que o fundamento protocolar subjacente à norma que fixa a competência do STA para conhecer em primeira instância dos litígios em que o Procurador-Geral da República seja parte [artigo 24.º, n.º 1, alínea a), subalínea viii)] perde razoabilidade perante atos em que não está em causa o exercício direto das respetivas competências, ditam a adequação da restrição teleológica daquela norma e a fixação da competência do TAC de Lisboa para conhecer em primeira instância dos referidos processos de contencioso pré-contratual» (transcrição do sumário).

O Supremo Tribunal Administrativo entende, portanto, que, não obstante a disposição literal da subalínea viii) da alínea a) do nº 1 do artigo 24º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, os tribunais administrativos de círculo são competentes para conhecer em primeira instância dos processos de contencioso pré-contratual relativos a atos ou omissões da Procuradora-Geral da República.

O acórdão foi relatado pela Conselheira Suzana Tavares da Silva, tendo obtido o voto favorável da Conselheira Maria do Céu Neves, e o voto desfavorável do Conselheiro Pedro Machete (com declaração de voto de vencido).

Estava em causa uma ação de contencioso pré-contratual intentada no tribunal administrativo de círculo, relativa a um concurso público em que a entidade adjudicante era a Procuradoria-Geral da República. O tribunal administrativo de círculo remeteu o processo para o Supremo Tribunal Administrativo por entender que se tratava do tribunal competente para conhecer do litígio, em primeira instância, dado o disposto na subalínea viii) da alínea a) do nº 1 do artigo 24º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.

3. No essencial (ainda que a argumentação seja mais variada), a motivação da decisão radica no seguinte:

«Os pressupostos fixados para a interpretação do artigo 24.º, n.º 1, al. a) do ETAF a verter no caso concreto indicam já que não se afigura correta a subsunção àquele enunciado legal do conhecimento da presente ação de contencioso pré-contratual, desde logo porque em causa está a coartação de dimensões relevantes da garantia da tutela jurisdicional efetiva dos concorrentes, os quais ficariam privados do foro especializado em primeira instância [apontado pelo legislador, aquando da respetiva introdução na organização judiciária como um elemento de garantia da eficiência no julgamento destes processos – v. DAR I série n.º 36, 2019.01.10, da 4.ª SL da XIII Leg ], da possibilidade de reapreciação, nos termos legais, do julgamento quanto à prova por um outro foro igualmente especializado em matéria de contratação pública [a especialização nos foi igualmente apontada como um elemento de incremento da eficiência no julgamento destes processos – v. DAR I série n.º 22, 2022.06.09, da 1.ª SL da XV Leg (pág. 3-10) pág. 5], o que é particularmente importante quando estejam em causa especificidades técnicas (como parece ser o caso aqui ao requerer-se prova pericial)». […]

«A isto acresce – como já dissemos – que também a agilização dos trâmites processuais – incluindo aqueles relativos à instrução e produção de prova – nos processos urgentes estão concebidos e desenhados na lei processual para serem aplicados pelo juiz singular em primeira instância, ficando aquela agilidade inelutavelmente comprometida com o funcionamento colegial imposto ao STA (artigo 17.º, n.º 5 do ETAF). Estaremos perante um sacrifício da tutela judicial em tempo útil, sem que esse sacrifício – uma vez mais – possa ser justificado pela necessidade de preservar a dignitas da entidade adjudicante, cujo ato apenas indiretamente pode ser imputado ao seu conteúdo funcional específico». […]

«Em suma, o carácter indireto em que as entidades do artigo 24.º, n.º 1, al. a) do ETAF podem legalmente configurar-se como “entidades adjudicantes” permite sustentar a restrição teleológica da interpretação normativa aqui adotada, atenta a necessidade de afeiçoar a letra da norma a uma aplicação uniforme da resolução de litígios em matéria de contencioso pré-contratual a todas as entidades referidas na norma, em linha com o sentido que presidiu à sua aprovação e, também para assegurar uma interpretação daquela norma em conformidade com o princípio da garantia da tutela jurisdicional efetiva dos cocontratantes, designadamente, nas dimensões da garantia do foro especializado em razão da matéria e da admissibilidade do recurso igualmente especializado quanto à decisão da matéria de facto, assim como a tramitação ágil do processo urgente em primeira instância».

4. A declaração de voto do Conselheiro Pedro Machete assenta nas seguintes considerações:

«A decisão em apreço funda-se metodologicamente numa redução teleológica do artigo 24.º, n.º 1, do ETAF – em concreto no respeitante à subalínea viii), mas a lógica acolhida pelo Tribunal neste caso vale para todas as subalíneas daquele número – e, bem assim, numa desvalorização, como “meramente formal”, do papel da Procuradora-Geral da República, enquanto entidade adjudicante ou dirigente de uma entidade adjudicante. Discordo destas duas abordagens». […]

«A redução teleológica pressupões uma lacuna oculta: entre os casos abrangidos pela previsão da norma a interpretar, encontra-se um a que a estatuição, segundo o sentido e o fim da norma, não se adequa. Existe lacuna devido à falta de previsão da correspondente restrição legal». […]

«Tal caso não corresponde, por isso, a uma lacuna oculta. Na verdade, para efeito dos “motivos protocolares” que estão na base da solução legal consagrada no art. 24.º, n.º 1, do ETAF, decisiva é a intervenção direta das entidades previstas nas suas subalíneas num litígio, e não a matéria objeto do mesmo ou a maior ou menor proximidade da ação ou omissão relativamente ao núcleo das funções específicas da entidade. O preceito em análise preocupa-se exclusivamente com o órgão competente, abstraindo, por causa das ditas “razões protocolares”, da sua competência matéria (por isso mesmo, não se pode falar de um qualquer esquecimento). Trata-se de uma escolha político-legislativa». […]

«Por último, a perspetiva sistémica evidencia que muitas das preocupações expressas na decisão com referência apenas à contratação pública ou não correspondem a problemas específicos daquele domínio ou têm vários lugares paralelos cuja justificação se prende precisamente com a particularidade ou com a dignitas de quem decide».

5. As preocupações subjacentes à motivação e ao sentido dispositivo do acórdão parecem-me válidas, justificando a atenção do legislador em próxima reponderação do sistema de competências dos tribunais administrativos. Já o caminho seguido e o seu resultado suscitam justificados receios.

Como expressou o Conselheiro Pedro Machete, na sua declaração de voto, «[…] não devem ser os juízes a impor o programa que tenham por mais adequado, substituindo-se ao legislador democrático».

A redução teleológica determina a desaplicação de uma disposição normativa a uma situação da vida expressamente abrangida pela sua letra, substituindo a referência literal pela referência teleológica. Embora se trate de uma operação hermenêutica admissível, pressupõe que a aplicação da disposição normativa à situação da vida se afigure manifestamente desadequada, dada a perversão evidente dos objetivos que se pretendiam prosseguir.

Para proceder à redução teleológica é necessário concluir que a regra legal, contra o seu sentido literal, mas de acordo com a teleologia manifestamente subjacente, necessita de uma restrição que não está contida no texto. Trata-se de uma lacuna oculta, para utilizar a expressão de Karl Larenz, referida na declaração de voto de vencido. A integração da lacuna efetua-se acrescentando a restrição.

A razão de ser da atribuição da competência ao Supremo Tribunal Administrativo para o conhecimento, em primeira instância, dos processos em matéria administrativa referenciados na alínea a) do nº 1 do artigo 24º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, radica na posição ocupada pela entidade a quem é imputada a ação ou omissão: Conselho de Ministros, Primeiro-Ministro, órgãos superiores do Estado, órgãos com previsão constitucional expressamente enunciados. É a posição relativa do órgão ou da entidade que fundamenta a exceção ao princípio da competência dos tribunais administrativos de círculo para conhecer, em primeira instância, dos processos no âmbito da jurisdição administrativa.

Ao que julgo, ao propósito do estabelecimento da exceção da alínea a) do nº 1 do artigo 24º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, são absolutamente indiferentes considerações relativas à matéria (administrativa) sobre a qual recaem as ações ou omissões a que diz respeito a ação.

Não existe qualquer lacuna, nem expressa nem oculta: o legislador pretendeu, por razões ligadas à dignidade do órgão e à sua posição relativa no sistema constitucional e legal, que a competência para o conhecimento, em primeira instância, dos processos contenciosos fosse atribuída ao Supremo Tribunal Administrativo.

A opção do legislador é, naturalmente, suscetível de ser criticada. O que não é admissível (face à divisão constitucional de tarefas e ao caráter primário da função legislativa) é a substituição do propósito legislativo por um propósito jurisprudencial.

Do ponto de vista prático, o acórdão é uma fonte de incerteza: como a motivação é extensível a várias matérias administrativas, suscita-se a dúvida sobre se o raciocínio dispositivo apenas se aplica ao contencioso pré-contratual ou também a outras matérias.