A propósito do “Governo em gestão”

A propósito do “Governo em gestão”

À luz da alínea b) do n.º 1 do art.º 195.º da Constituição, a aceitação pelo Presidente da República do pedido de demissão apresentado pelo Primeiro-Ministro implica a demissão do Governo. Apesar de, no período democrático, não ser do conhecimento público a recusa do pedido de demissão de qualquer primeiro-ministro, constitucionalmente parece admissível que o Presidente recuse o pedido de demissão que o primeiro-ministro lhe apresente.  

De qualquer modo, se aceite a demissão do primeiro-ministro pelo Presidente, encontra-se o Governo demitido. Sendo que após a respetiva demissão, dita ainda a Constituição que “o Governo limitar-se-á à prática dos atos estritamente necessários para assegurar a gestão dos negócios públicos.” (n.º 5 do art.º 186.º da Constituição), estando, assim, “em gestão”.

A circunstância de o Governo se encontrar “em gestão” releva quanto ao respetivo exercício das competências política, legislativa e administrativa. Ou seja, o Governo passa a estar transversalmente diminuído no exercício daquelas competências. No entanto, é relevante sublinhar que um Governo “diminuído” não é um Governo “impedido” do exercício destas competências.

Com efeito, pode um Governo “em gestão” praticar atos próprios da função política, da função legislativa e da função administrativa, não sendo a natureza do ato o critério determinante para aferir da admissibilidade da prática de atos pelo Governo nesta fase. Como há muito assinalou o Tribunal Constitucional “o Governo demitido não está limitado em função da natureza, da forma ou do conteúdo dos actos (pode efectivamente praticar quaisquer actos nos domínios político, legislativo e administrativo, excepto aqueles que por essência sejam incompatíveis com a situação institucionalmente patológica, sob a qual desenvolve a sua acção (…)” (Acórdão n.º 56/84).

E ao invés do que é tantas vezes difundido, a jurisprudência do Tribunal Constitucional não reconduz os atos a praticar pelo Governo em gestão aos “atos de gestão corrente”. Neste âmbito, merece referência o Acórdão n.º 65/2002, segundo o qual “Uma limitação destas provocaria, seguramente, a paralisação da Administração Pública, inutilizando a obrigação constitucionalmente imposta ao governo demitido de se manter em funções até à sua substituição.”.

Na verdade, para o Tribunal Constitucional, não é a sobredita natureza do ato que releva para aferir da respetiva admissibilidade, mas sim o da “estrita necessidade” para a sua prática, conforme acolhido no Acórdão n.º 2/88 (relator Vital Moreira), seguido no Acórdão n.º 65/2002, na linha das anotações à Constituição de Gomes Canotilho e Vital Moreira:

O preceito não estabelece nenhum limite quanto à natureza dos actos, podendo, portanto, ser praticados actos de qualquer tipo, sem excluir os de natureza legislativa, e não apenas os de “gestão corrente”. Ponto é que, qualquer que seja a sua natureza, eles sejam “estritamente necessários”. O conceito de estrita necessidade comporta uma margem de relativa incerteza, pelo que a sua definição pode demarcar-se a partir de dois Índices: a importância significativa dos interesses em causa, em tais termos que a omissão do acto afectasse de forma relevante a gestão dos negócios públicos; a inadiabilidade, isto é, a impossibilidade de, sem grave prejuízo, deixar a resolução do assunto para o novo Governo ou por momento ulterior a apreciação do seu programa (Cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 2a ed.2° vol., pp.264 e 265). (cfr. Acórdão n.º 2/88)

Uma nota final para recordar que as autorizações legislativas caducam com a demissão do Governo a que tiverem sido concedidas, bem como com o termo da legislatura ou com a dissolução da Assembleia da República (n.º 4 do art.º 165.º da Constituição). E que também as propostas de lei e de referendo caducam com a demissão do Governo (n.º 6 do art.º 167.º da Constituição).

No plano infraconstitucional, a lei prevê que o Governo em gestão fica condicionado na designação de titulares de cargos públicos (n.º 13 do art.º 19.º do Estatuto do pessoal dirigente, n.º 5 do art.º 13.º do Estatuto do gestor público ou ainda o n.º 7 do art.º 17.º da Lei-quadro das entidades reguladoras).