A Comissão das Cláusulas Contratuais Gerais (a “Comissão”) foi recentemente criada pelo Decreto-Lei n.º 123/2023, de 26 de dezembro. Este diploma, que entrou em vigor no dia imediatamente seguinte ao da sua publicação, vem operacionalizar o sistema administrativo de controlo e prevenção de cláusulas abusivas previsto na Lei n.º 32/2021, de 27 de maio, e que alterou o regime jurídico das cláusulas contratuais gerais, instituído pelo Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de outubro (aqui abreviadamente designado por LCCG).
Para se compreender o papel da Comissão, interessa ter presente que o referido sistema administrativo – previsto na Lei n.º 32/2021, de 27 de maio, mas aí não regulamentado – foi implementado com o objetivo de prevenir a utilização de contratos que integrem cláusulas contratuais gerais abusivas, de informar os consumidores e de dissuadir esta prática, dando maior visibilidade aos fornecedores de bens e serviços que incluam cláusulas contratuais declaradas judicialmente como abusivas nos seus contratos. Segundo o texto legal, com este sistema «garant[e-se] que as cláusulas consideradas proibidas por decisão judicial não são aplicadas por outras entidades» (artigo 3.º, n.º 2, da Lei n.º 32/2021, de 27 de maio).
A Comissão é uma entidade administrativa independente, de natureza consultiva, a funcionar junto dos membros do Governo responsáveis pelas áreas da justiça e da defesa do consumidor (artigo 34.º-E da LCCG). Entrará em funcionamento 90 dias após a entrada em vigor do diploma que procedeu à sua criação, o Decreto-Lei n.º 123/2023, de 26 de dezembro (artigo 6.º desse diploma), e deverá ter regulamento interno próprio, definidor das suas regras de organização e de funcionamento (artigo 34.º-N da LCCG). A composição da Comissão encontra-se fixada na lei: terá sete membros efetivos, de diversas proveniências e estatutos, e cuja designação é, na maioria dos casos, feita pelas entidades ou serviços de origem dos mesmos (artigo 34.º-G da LCCG).
Nos termos em que as suas atribuições se encontram legalmente definidas, à Comissão cabe o controlo e o acompanhamento das cláusulas contratuais gerais sujeitas à LCCG, sejam estas cláusulas contratuais gerais pré-existentes (integradas em contratos já celebrados e em execução), sejam estas cláusulas contratuais gerais já elaboradas, mas para utilização futura.
Contudo, o perímetro de atuação da Comissão encontra-se francamente limitado, uma vez que a intervenção desta entidade é afastada quando se trate de cláusulas contratuais gerais incluídas em contratos que tenham por objeto produtos ou serviços de «setores sujeitos à função reguladora e fiscalizadora das entidades reguladoras ou de controlo de mercado competentes, nos termos da legislação sectorialmente aplicável» (artigo 34.º-F, n.º 1, in fine, da LCCG). Basta pensar nas cláusulas contratuais inseridas em contratos bancários, em contratos de seguro, ou em contratos relativos ao fornecimento de bens e prestação de serviços essenciais (nos quais os tribunais detetam, com frequência, cláusulas abusivas), para compreender a abrangência do universo contratual que, neste modelo regulativo, escapa ao controlo da Comissão.
O controlo e acompanhamento das cláusulas contratuais gerais sujeitas à LCCG é realizado, pela Comissão, por diferentes formas.
Em primeiro lugar, pelo tratamento (recolha, arquivo e publicidade) da informação relativa às cláusulas contratuais gerais:
- À Comissão compete recolher, junto dos proponentes, contratos que integrem cláusulas contratuais gerais ou modelos de cláusulas contratuais gerais elaboradas para utilização futura, para que possa analisar as mesmas. O conteúdo e natureza desta recolha não está suficientemente densificado na LCCG, na versão que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 123/2023, de 26 de dezembro. Estabelece-se apenas que essa recolha será feita pela Comissão através da Direção-Geral do Consumidor (artigo 34.º-F, n.º 2, alínea a), da LCCG), sem esclarecer se a Comissão está adstrita a um dever de recolha e sem apresentar os critérios que devem presidir à escolha dos proponentes e das cláusulas utilizadas ou a utilizar por estes. Também não resulta claro da lei se os proponentes podem, por iniciativa própria, e de forma espontânea, comunicar as suas cláusulas à Comissão, ou mesmo pedir a análise prévia, por esta, dessas cláusulas.
- A Comissão tem a incumbência de arquivar, gerir, organizar, e atualizar a informação relativa às cláusulas contratuais gerais (artigo 34.º-F, n.º 2, alínea f), da LCCG). Sobretudo quando se trate de cláusulas contratuais gerais cujo depósito é obrigatório junto da Comissão – sendo que essa obrigatoriedade será estabelecida, por portaria, em função de áreas de atividade económica e de tipos de empresas proponentes. Os deveres de gestão da informação pela Comissão são especialmente intensos no que respeita ao Portal das Cláusulas Contratuais Gerais (artigo 34.º-J da LCCG), seja pela extensão da informação a publicitar nesse portal (como se verá adiante), seja pelo dever de manter essa informação atualizada e, quando aplicável, anonimizada.
- A Comissão tem o dever de conferir publicidade, no Portal das Cláusulas Contratuais Gerais, pelo menos, aos seguintes elementos e informação: recomendações e os pareceres por si emitidos, contratos-tipo elaborados nos termos do artigo 34.º-I da LCCG, e decisões transitadas em julgado que proíbam o uso ou a recomendação de cláusulas contratuais gerais ou declarem a nulidade de cláusulas inseridas em contratos singulares. Quanto a estas decisões, cabe notar que a Comissão tem também o dever de registar, no Portal das Cláusulas Contratuais Gerais, as cláusulas contratuais abusivas que tenham sido objeto dessas decisões. É certo que o regime atualmente em vigor já prevê o registo e a publicitação destas decisões judiciais[1] – sucede que, com o Portal, é criada uma plataforma única para a divulgação de informação sobre cláusulas contratuais gerais, robustecendo-se o sistema existente através desta consolidação da informação.
- A Comissão tem também o dever de gestão e manutenção do Portal das Cláusulas Contratuais Gerais (artigo 34.º-F, n.º 2, alínea f), da LCCG). Este dever não se confunde com o dever de gerir a informação divulgada no Portal, referido no ponto (ii) supra. Em ambos os casos, a Comissão torna-se, por isso, responsável pelo tratamento dos dados pessoais, na aceção do artigo 4.º, n.º 7, do Regulamento Geral da Proteção de Dados. A gestão de uma plataforma eletrónica compreende um conjunto de atos materiais e de atos jurídicos associados à concreta infraestrutura tecnológica constituída por um conjunto de aplicações, meios e serviços informáticos necessários ao funcionamento da mesma. O Portal deve ser disponibilizado ao público, pela Comissão, no prazo de 180 dias após a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 123/2023, de 26 de dezembro (artigo 7.º, n.º 1, desse diploma). Como visto, o Portal será munido de informação pretérita e presente, o que implica a transferência de informação pré-existente noutros domínios e plataformas: neste sentido, deverão transitar para o Portal «os dados do registo de cláusulas contratuais gerais abusivas constantes da área da jurisprudência publicada pelo Ministério da Justiça», sendo que a Direção-Geral do Consumidor e a Direção-Geral da Política de Justiça e o Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça, I.P. têm o dever de colaborar nessa transferência de dados (artigo 7.º, n.º 1, alínea b), e n.º 2, do Decreto-Lei n.º 123/2023, de 26 de dezembro). No que respeita à informação futura a disponibilizar no Portal, e que implique uma colaboração entre entidades, estabelece o artigo 7.º, n.º 1, alínea c), do Decreto-Lei n.º 123/2023, de 26 de dezembro, o dever de os tribunais comunicarem à Comissão, por via eletrónica, «versão anonimizada das decisões que transitem em julgado e que proíbam o uso ou a recomendação de cláusulas contratuais gerais ou declarem a nulidade de cláusulas inseridas em contratos singulares, expurgadas de elementos de identificação das partes de acordo com o Regulamento Geral de Proteção de Dados».
Em segundo lugar, é atribuída à Comissão uma função consultiva:
- A Comissão tem, na sequência de análise realizada para o efeito, o poder de emitir recomendações visando a retirada ou alteração de cláusulas contratuais gerais ou de cláusulas contratuais gerais elaboradas para utilização futura (artigo 34.º-F, n.º 2, alínea b), da LCCG), designadamente, aquelas que a Comissão conheça na sequência da recolha feita nos termos do artigo 34.º-F, n.º 2, alínea a), da LCCG,ou do depósito obrigatório, em moldes a regular em portaria (artigo 34.º-L da LCCG)
- Mediante pedido dos tribunais judiciais, a Comissão tem também o poder de emitir parecer sobre o eventual carácter proibido de cláusulas contratuais gerais (artigo 34.º-F, n.º 2, alínea d), da LCCG), sendo fixado um prazo de 30 dias úteis para essa emissão (artigo 34.º-F, n.º 5, da LCCG).
- Cabe também à Comissão apreciar e emitir parecer sobre as iniciativas legislativas relativas à proibição ou regulamentação de cláusulas contratuais gerais que lhe sejam submetidas (artigo 34.º-F, n.º 2, alínea e), da LCCG), no prazo de 30 dias úteis a contar da receção do pedido (artigo 34.º-F, n.º 5, da LCCG).
No exercício desta função consultiva, os proponentes das cláusulas contratuais gerais que sejam objeto das recomendações ou pareceres acima referidos têm direito a ser ouvidos previamente à emissão dos mesmos, aplicando-se, com as devidas adaptações, o disposto no Código do Procedimento Administrativo (artigo 34.º-F, n.º 4, da LCCG). Neste exercício, a Comissão pode ainda, sempre que entender necessário, ouvir associações de consumidores e associações empresariais dos setores de atividade económica em causa, devendo a escolha das mesmas ser fundamentada (artigo 34.º-F, n.º 3).
Em terceiro lugar, cabe à Comissão o controlo ex post das cláusulas que tenham sido judicialmente sancionadas. Este controlo limita-se, porém, ao dever de comunicar ao Ministério Público e, adicionalmente, caso aplicável, à entidade autora da ação respetiva (quando a ação tenha sido intentada por alguma das associações referidas nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 26.º da LCCG), qualquer situação de incumprimento da obrigação de abstenção por parte do proponente, parte vencida de uma ação já transitada em julgado, de utilizar ou de recomendar cláusulas contratuais gerais que tenham sido objeto de proibição definitiva por decisão transitada em julgado.
Em quarto lugar, à Comissão é reconhecida, em certas condições, uma função uniformizadora na elaboração e adoção de cláusulas contratuais gerais. Prevê o artigo 34.º-I da LCCG a possibilidade de a Comissão, em cooperação e conjuntamente com entidades reguladoras ou de controlo do mercado, promover a elaboração de contratos-tipo, de adoção voluntária, para esses setores (podendo ainda ser ouvidas as associações de consumidores e associações empresariais dos setores de atividade económica em causa).
Apresentados os principais traços do regime, podem, porém, decantar-se alguns aspetos quanto aos quais esse regime não fornece resposta direta – e que, por sua vez, fundam dúvidas ou reservas do intérprete-aplicador sobre o modus operandi da Comissão e sobre a efetividade do seu papel no controlo e prevenção de cláusulas abusivas.
Num discurso oscilante entre dúvidas sobre o direito positivo e propostas de jure condendo, salientam-se os seguintes dez aspetos problemáticos:
- Os limites à atuação da Comissão em setores regulados e sua relação com entidades reguladoras: o regime não define os critérios para o afastamento da Comissão nesses casos, não sendo inequívoco se, estando em causa contratos respeitantes a produtos ou serviços de setores regulados, a Comissão está, por isso, apartada do controlo de cláusulas contratuais gerais, ou se tal afastamento apenas sucederá quando a entidade reguladora acolha ou tenha emitido regras, recomendações ou orientações específicas sobre cláusulas contratuais gerais no respetivo setor – e se, não sendo esse o caso, a Comissão poderia exercer, nesse setor, as suas funções, a título residual e subsidiário. Por outro lado, o regime também não prevê a possibilidade de ser dada publicidade, no Portal, a recomendações ou decisões administrativas das entidades reguladoras sobre cláusulas contratuais gerais.
- Contratos-tipo e âmbito de aplicação do regime: a uniformização de cláusulas contratuais gerais através da elaboração de contratos-tipo, desenhada no artigo 34.º-I da LCCG num sistema de cooperação entre a Comissão e as entidades reguladoras de setores de atividade económica, leva a que se questione se as cláusulas incluídas nesses contratos estão também subtraídas à aplicação da LCCG, atento o disposto no artigo 3.º da LCCG. Interessa aqui considerar que este artigo, na sua alínea a), exclui do âmbito de aplicação da LCCG «as cláusulas típicas aprovadas pelo legislador». Não se ignora que não é essa a hipótese no que respeita aos contratos-tipo: são aprovados por entidades administrativas e são de adoção voluntária pelos proponentes. Não obstante, interpretado o artigo 3.º, alínea a), da LCCG, em harmonia com o teor da Diretiva 93/13/CEE do Conselho, de 05/04/1993, relativa às cláusulas abusivas nos contratos celebrados entre consumidores e com a correspondente jurisprudência do Tribunal de Justiça, alcança-se a seguinte conclusão: excluem-se do âmbito de aplicação do regime as cláusulas aprovadas pelo legislador, e até outras elencadas nas demais alíneas do artigo 3.º da LCCG, porque «se parte do princípio de que as disposições legislativas ou regulamentares dos Estados-membros que estabelecem, direta ou indiretamente, as cláusulas contratuais com os consumidores não contêm cláusulas abusivas; que, consequentemente, se revela desnecessário submeter [ao regime essas] cláusulas» – como resulta do preâmbulo da referida Diretiva. Ora, este juízo de desnecessidade de sujeição ao regime, e que funda a sobredita exclusão ao mesmo, procede também, julga-se, no que respeita às cláusulas contratuais inseridas em contratos-tipo que sejam, nos termos do artigo 34.º-I da LCCG, elaborados pela Comissão e por entidade reguladora setorialmente competente. Especialmente quando, nesse processo, tenha sido promovida a audição de associações de consumidores e associações empresariais dos setores de atividade económica em causa (artigo 34.º-I, in fine, da LCCG).
- O conteúdo do dever de recolha dos contratos e concretização dessa recolha: o regime não deixa claro se a Comissão tem um dever de recolha, nem estabelece os critérios que norteiam a Comissão nessa recolha, através da Direção-Geral do Consumidor, dos contratos que integrem cláusulas contratuais gerais. Limita-se a nomear essa recolha como uma “atribuição” da Comissão e a referir que essa recolha é feita junto dos proponentes, quando até faria sentido incluir, nesta recolha, terceiros ou intermediários que, na sua atividade, recomendem contratos que integrem cláusulas contratuais gerais (em linha com o alargamento da legitimidade passiva a estes sujeitos que se encontra no artigo 27.º, n.º 2, da LCCG). Do texto do artigo 34.º-F, n.º 2, alínea a), da LCCG, extrai-se uma funcionalização da recolha à análise desses clausulados pela Comissão (“…para efeitos de análise”). Tal é suficiente para concluir que uma recolha geral, desgarrada de um propósito específico de análise pela Comissão, não terá, neste quadro normativo, fundamento legal. Todavia, afigura-se impraticável uma recolha geral de contratos, sem critérios específicos, por ser impossível a análise, pela Comissão, de todos os clausulados contratuais em vigor ou que se projetem utilizar. Pelo menos numa primeira fase da vida da Comissão, na eleição de critérios que presidam a essa recolha, tanto se admite a valência de critérios quantitativos (como a dimensão do proponente – v.g., micro, pequena ou média empresa – ou a extensão do universo de sujeitos efetivamente ou potencialmente abrangidos por esses contratos), como de critérios qualitativos (v.g., se os contratos respeitam à prestação de serviços públicos essenciais, na aceção da Lei n.º 23/96, de 26 de julho).
- Finalidades do depósito obrigatório: as ambiguidades do regime estendem-se também aos casos em que o depósito, pelos proponentes, de modelos de cláusulas contratuais gerais é obrigatório (artigo 34.º-L da LCCG). Não são explicitadas as finalidades desse depósito, porquanto não é estabelecida qualquer incumbência ou dever da Comissão, ou das entidades reguladoras setorialmente competentes, de analisar, aprovar ou mesmo validar as cláusulas depositadas. Nem sequer um dever de conferir publicidade a esses modelos de cláusulas no Portal das Cláusulas Contratuais Gerais (o artigo 34.º-J, n.º 1, da LCCG, apesar da sua enumeração meramente enunciativa, omite estes modelos de cláusulas do seu elenco). Admite-se que, assim o querendo a Comissão ou as entidades reguladoras, possam estas publicar e analisar tais cláusulas objeto de depósito.
- A apreciação de cláusulas contratuais gerais a pedido dos proponentes: nas hipóteses em que não se justifique ou não se concretize a recolha, pela Comissão, dos contratos que integrem cláusulas contratuais gerais, o regime parece não consentir que os proponentes espontânea e voluntariamente solicitem à Comissão a análise dos contratos por si utilizados ou que pretendam utilizar no futuro. Considerando as finalidades subjacentes à aprovação deste regime e à constituição da Comissão – como resulta do texto preambular do Decreto-Lei n.º 123/2023, de 26 de dezembro, são estas a prevenção da utilização de contratos que integrem cláusulas contratuais gerais abusivas e a dissuasão de tal prática –, teria sentido conferir aos proponentes esta iniciativa. Mais do que uma sujeição ao controlo da Comissão, estes teriam, mediante o pagamento de uma contrapartida, o poder de desencadear esse controlo ex ante e, com isso, beneficiar de uma abonação, com efeitos jurídicos a definir, dos clausulados contratuais por si utilizados.
- O valor dos atos da Comissão (recomendações e pareceres): no exercício da sua função consultiva, a Comissão tem o poder de emitir pareceres e recomendações. Estes atos da Comissão não têm valor normativo, nem vinculam os seus destinatários (artigo 91.º, n.º 2, do Código do Procedimento Administrativo). As recomendações emitidas pela Comissão nos termos do artigo 34.º-F, n.º 2, alínea b), da LCCG, visando a retirada, alteração ou não adoção de cláusulas contratuais gerais, não constituem parâmetro de validade dessas cláusulas, nem parâmetro de licitude da conduta dos proponentes que não observem tais recomendações. Nem está a Comissão habilitada a intervir no conteúdo dos contratos nos quais detete cláusulas contratuais gerais proibidas. Tanto assim é que a inobservância, pelos proponentes, das recomendações da Comissão não constitui a prática de contraordenação, atento o disposto no artigo 34.º-A da LCCG. Da mesma forma, os pareceres emitidos pela Comissão ao abrigo do artigo 34.º-F, n.º 2, alínea d), da LCCG, a pedido dos tribunais judiciais, também não adstringem os tribunais – naquele ou noutros processos – ao sentido dos mesmos, mesmo que a Comissão conclua serem as cláusulas objeto de apreciação «cláusulas proibidas», na aceção da LCCG. Apesar da falta de normatividade destes atos da Comissão, os mesmos são publicados no Portal das Cláusulas Contratuais Gerais (artigo 34.º-J, n.º 1, alínea a), da LCCG), e não se ignora que o soft power dos mesmos, potenciado por essa publicação, possa, de facto, exceder um efeito meramente “orientador”. Note-se que esta publicação pode coexistir com a utilização, pelos proponentes, de cláusulas contratuais consideradas proibidas pela Comissão. Num cenário mais antagónico e que expõe um indesejável desacerto, pode até essa publicação coexistir com decisão judicial transitada em julgado pela qual se decidiu não declarar proibida a cláusula contratual geral objeto de apreciação.
- O valor do silêncio da Comissão: similarmente, no caso em que a Comissão não emita qualquer pronúncia quanto a cláusulas contratuais que conheça, ou possa conhecer, na sequência da recolha feita por sua iniciativa (artigo 34.º-F, n.º 2, alínea a), da LCCG)ou do depósito obrigatório das mesmas (artigo 34.º-L da LCCG), não é possível atribuir qualquer efeito positivo (no sentido de uma autorização ou aprovação das cláusulas e, a partir daí, concluir que as mesmas não são proibidas) a esse silêncio.
- A deteção do incumprimento dos proponentes (ou de terceiros): exercendo um controlo ex post das cláusulas que tenham sido judicialmente sancionadas, tem a Comissão, nos termos do artigo 34.º-F, n.º 2, alínea c), da LCCG, o dever de comunicar ao Ministério Público (e, em certos casos, aos autores da ação judicial respetiva), situações de incumprimento dos proponentes que tenham sido condenados, por decisão transitada em julgado, em abster-se de utilizar ou de recomendar cláusulas contratuais gerais proibidas. A deteção deste incumprimento pela Comissão suscita dúvidas, às quais o texto legal não fornece resposta: a Comissão tem o dever de deteção desse incumprimento? Se sim, tal implica reconhecer que a Comissão tem o dever de acompanhamento e de fiscalização dos contratos utilizados pelos proponentes condenados após o trânsito em julgado da decisão respetiva. Sendo que a concretização desse dever implicará, por sua vez, que a recolha dos contratos referida no artigo 34.º-F, n.º 2, da LCCG, seja, nesses casos, obrigatória para a Comissão (desde logo, porque, correspetivamente, não existe norma que imponha ao proponente condenado o dever de comunicar à Comissão os contratos por si utilizados após esse trânsito em julgado). Também não são claros os moldes em que a Comissão pode conhecer esse incumprimento por terceiros, não proponentes, que recomendem as cláusulas formuladas por estes e que foram judicialmente sancionadas. Como já criticado, a recolha dos contratos é feita junto dos proponentes, sendo a lei omissa quanto à possibilidade dessa recolha junto de terceiros ou intermediários, em claro desajuste com a solução de incluir estes sujeitos no perímetro da legitimidade passiva desenhado no artigo 27.º, n.º 2, da LCCG.
- O alargamento aos meios de resolução alternativa de litígios: o regime estabelece uma cooperação específica entre a Comissão e os tribunais judiciais. Seja quando estes podem pedir à Comissão a emissão de parecer sobre cláusulas contratuais gerais (artigo 34.º-F, n.º 2, alínea d), da LCCG), seja quando à Comissão sejam comunicadas decisões anonimizadas transitadas em julgado que proíbam o uso ou a recomendação de cláusulas contratuais gerais ou declarem a nulidade de cláusulas inseridas em contratos singulares, com vista ao seu registo e publicação no Portal das Cláusulas Contratuais Gerais (artigos 34.º-M e 34.º-J, n.º 1, alínea c), da LCCG), bem como à deteção, pela Comissão, de qualquer situação de incumprimento da obrigação de abstenção por parte do proponente que resulte de decisão transitada em julgado (artigo 34.º-F, n.º 2, alínea c), da LCCG). Considerando o crescente recurso aos meios de resolução alternativa em litígios de consumo, designadamente a resolução de conflitos em centros de arbitragem ou em julgados de paz, tem sentido a extensão, a estes, do poder de pedir a intervenção da Comissão na apreciação de cláusulas contratuais gerais – desde logo, quando a natureza proibida destas seja questão prejudicial de cuja resolução depende o conhecimento do fundo ou mérito da ação. Não se ignoram as limitações respeitantes à publicação das decisões arbitrais (vide artigo 30.º, n.º 6, da Lei da Arbitragem Voluntária), nem as discussões em torno da importância da publicação das decisões dos centros de arbitragem de consumo. Mas defende-se que igual extensão deve valer quanto ao registo, publicação e controlo do cumprimento, pela Comissão, das decisões proferidas por tribunais arbitrais que lhe sejam comunicadas, de conteúdo similar às decisões judiciais referidas no artigo 34.º-J, n.º 1, alínea c), da LCCG.
- Questões reputacionais e direito ao esquecimento dos proponentes: a publicidade dada, no Portal das Cláusulas Contratuais Gerais, aos atos da Comissão, bem como às decisões judiciais transitadas em julgado que declarem a nulidade de cláusulas proibidas e que condenem o proponente, quando identificado, a abster-se de utilizar essas cláusulas é apta, em abstrato, a lesar a reputação e o bom nome dos proponentes visados. No caso dos atos da Comissão, tendo presente que o n.º 2 do artigo 34.º-J da LCCG impõe que «os documentos disponibilizados no Portal […] devem ser expurgados de elementos de identificação das pessoas ou entidades envolvidas e, em geral, de quaisquer dados pessoais», esta lesão será dificilmente verificável, mas a considerar quando a anonimização imposta não seja cumprida pela Comissão. No caso das decisões judiciais, os proponentes condenados não gozam de proteção similar: são identificados (artigo 34.º-J, n.º 3, da LCCG). Neste caso, admite-se que estes passem, numa qualquer pesquisa em motor de busca em linha, com indexações aos dados do Portal, a surgir negativamente associados ao uso de cláusulas abusivas. A ilicitude dessa lesão está, à partida, afastada, uma vez que é a lei que impõe, como regra geral, a identificação dos proponentes (artigo 34.º-J, n.º 3, da LCCG). Todavia, ainda que não estejam em causa «dados pessoais» dos proponentes pessoas coletivas, a severidade do regime, que não salvaguarda qualquer “direito ao esquecimento”, deve ser assinalada: será desproporcional – sobretudo, pela sua desnecessidade – a manutenção da publicidade e registo da decisão judicial e da identificação do proponente quando, (i) tendo decorrido período temporal relevante, (ii) o proponente tenha observado o comando judicial de abstenção de utilização de cláusulas proibidas, e (iii) não seja, quanto àquele ou a outro clausulado por si utilizado, reincidente na utilização de cláusulas proibidas.
[1] A plataforma em linha atualmente disponível para o efeito encontra-se em https://www.dgsi.pt/jdgpj.nsf?OpenDatabase. O fundamento legal para esta disponibilização já se encontrava na versão anterior do artigo 34.º da LCCG (na redação dada pelo Decreto-Lei n.º 220/95, de 31 de agosto), que impunha aos tribunais um dever de comunicação das decisões judiciais para efeito de registo nos seguintes termos: «os tribunais devem remeter, no prazo de 30 dias, ao serviço previsto no artigo seguinte, cópia das decisões transitadas em julgado que, por aplicação dos princípios e das normas constantes do presente diploma, tenham proibido o uso ou a recomendação de cláusulas contratuais gerais ou declarem a nulidade de cláusulas inseridas em contratos singulares». Na sua versão atual, conforme redação dada pelo Decreto-Lei n.º 123/2023, de 26 de dezembro, mantém-se no artigo 34.º da LCCG a determinação de um dever de comunicação, agora à Comissão: «No prazo de 30 dias após o trânsito em julgado, os tribunais remetem à Comissão das Cláusulas Contratuais Gerais (Comissão) as decisões que, por aplicação dos princípios e das normas constantes do presente diploma, proíbam o uso ou a recomendação de cláusulas contratuais gerais ou declarem a nulidade de cláusulas inseridas em contratos singulares».
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