O contencioso de fundos europeus assenta frequentemente na impugnação de deliberações das Autoridades de Gestão que “revogam”[1] ou reduzem o montante dos apoios financiados por fundos comunitários, ditam a descativação do incentivo, a desvalidação da despesa certificada e paga, e a consequente obrigação de restituição dos montantes recebidos.
Estas duras decisões administrativas podem surgir durante a execução de projetos aprovados, mas também na sua fase final, alterando retroativamente os pressupostos de sustentação financeira planeados pelos beneficiários. Um caso bem ilustrativo do clássico provérbio latino dura lex, sed lex.
O risco de fraude na utilização de fundos europeus acentuou-se no contexto da pandemia COVID-19 “ devido ao aumento dos riscos relacionados com a gestão da crise e com a introdução, no contexto da pandemia, de procedimentos simplificados e urgentes, propensos a abusos”[2]. Presentemente, o aumento sem precedentes das despesas da União Europeia no âmbito do Quadro Financeiro Plurianual 2021‑2027 e do plano de recuperação NextGenerationEU (NGEU)faz temer o risco de utilização indevida de fundos por parte da criminalidade organizada, “incluindo as organizações de cariz mafioso e as estruturas oligárquicas (que) tentam infiltrar a economia legal e cometem irregularidades administrativas com métodos criminosos mais nocivos e mais difíceis de investigar e corrigir (o que) inclui, cada vez mais, o recurso a intermediários altamente qualificados que são capazes de cometer fraudes lesivas dos fundos europeus extremamente sofisticadas e difíceis de detetar, fazendo desaparecer fundos através de arquiteturas financeiras complexas, por vezes com a ajuda de paraísos fiscais, o que torna particularmente difícil localizar e recuperar os fundos.”[3].
Neste contexto, as deliberações das Autoridades de Gestão que “revogam” ou reduzem apoios provenientes de fundos europeus aprovados não deixam de dever ser perspetivadas sob o prisma das garantias dos visados, mas no contexto de aumento do risco de fraudes acima exposto, adquirem uma importância acrescida enquanto instrumentos de proteção dos interesses financeiros da União Europeia.
Neste quadro, vale a pena determo-nos brevemente sobre o enquadramento desta situação, à luz do modelo de gestão dos fundos do “Portugal 2020”, cuja execução e contencioso se encontram pendentes.
- A relação dos órgãos de governação com os beneficiários dos Fundos Europeus assenta no princípio da confiança da informação veiculada pelos beneficiários e na contratualização das suas responsabilidades. Assim, após a aprovação da uma candidatura, cada beneficiário responsabiliza-se pelo cumprimento das suas obrigações subscrevendo um compromisso de que executará a operação aprovada nos termos e condições definidos na respetiva decisão de aprovação e na legislação europeia e nacional aplicável, por regra designado “termo de aceitação”[4]. Qualquer alteração ou ocorrência, que ponha em causa os pressupostos relativos à aprovação da operação, deverá ser obrigatoriamente comunicada à Autoridade de Gestão (“AG”).
- Em contrapartida desta “confiança contratualizada”, a lei reforça as sanções em caso de incumprimento das obrigações assumidas ou de falsidade das informações prestadas. Paralelamente e alarga a responsabilidade dos beneficiários aos titulares dos seus órgãos de direção, de administração ou de gestão que estejam em exercício de funções à data da prática dos factos que a determinem. Estes ficam individual e subsidiariamente responsáveis pelo cumprimento das obrigações do beneficiário, incluindo pela obrigação de reposição de montantes indevidamente recebidos ou não justificados[5].
- As sanções pelo incumprimento das obrigações dos beneficiários podem ser temporárias, até à regularização da situação subjacente, como sucede com a suspensão dos pagamentos solicitados[6], ou podem ser definitivas, como a perda (total ou parcial) do direito ao incentivo aprovado e o dever de reposição (total ou parcial) dos apoios já recebidos[7].
- Para além dos poderes específicos das autoridades de certificação de despesa e das autoridades de auditoria, as Autoridades de Gestão (“AG”) dos Programas Operacionais (PO) financiados por fundos europeus têm o“poder-dever” de verificar se os produtos e serviços (co)financiados foram efetivamente realizados, se os resultados definidos aquando da aprovação da candidatura foram efetivamente alcançados e se a despesa declarada pelos beneficiários foi efetivamente por este paga, bem como a sua conformidade com a legislação aplicável, com o PO e com as condições de apoio da operação. Por sua vez, os beneficiários têm a obrigação de fornecer as informações necessárias às atividades de monitorização e de avaliação das operações financiadas e de participar em processos de inquirição relacionados com as mesmas, de adotar comportamentos que respeitem os princípios da transparência, da concorrência e da boa gestão dos dinheiros públicos[8].
- A deteção de irregularidades no cumprimento das obrigações dos beneficiários surge muitas vezes na sequência de verificações administrativas e de visitas de controlo ao local de execução dos projetos, realizadas em sede de análise dos pedidos de pagamento apresentados pelos beneficiários, pelos técnicos das AG ou de organismos intermédios a quem as AG deleguem estes poderes. A frequência e o alcance das verificações das operações são proporcionais ao montante do apoio público concedido a uma operação e ao nível do risco identificado por essas verificações e pelas auditorias realizadas pela autoridade de auditoria ao sistema de gestão e de controlo no seu conjunto. A verificação de operações individuais pode ser realizada por amostragem[9].
- Assim, o sistema de controlo interno das AG passa por este tipo de controlos quotidianos, que visam assegurar a prevenção e deteção atempadas de irregularidades e fraudes.
- Sem prejuízo, as irregularidades de projetos financiados por fundos europeus podem ser detetadas somente no momento do encerramento financeiro do projeto, altura em que as condições subjacentes à aprovação de um projeto são de novo reavaliadas, ou mesmo após encerramento da operação, em sede de auditoria por parte dos organismos (autónomos) responsáveis.
- Nestes casos, as Deliberações das AG de reposição total ou integral de apoios surgirá em fase final de interação administrativa com os beneficiários, quando grande parte da despesa já foi validade e paga.
- Efetivamente, a passagem do tempo e as diversas intervenções públicas ao nível da validação, pagamento e certificação de despesa, não têm o condão de sedimentar direitos adquiridos neste plano de tutela da legalidade na afetação de fundos europeus.
- A proteção do interesse público específico subjacente à tutela dos interesses financeiros da União e do combate à fraude justifica regras específicas em matéria de prescrição do procedimento de aplicação de medidas e sanções administrativas impostas com fundamentos em irregularidades cometidas pelos beneficiários de fundos europeus.
- Tal prazo de prescrição é de quatro anos a contar da data em que foi praticada a irregularidade ou, no caso de irregularidades continuadas ou repetidas, da data em que cessou a irregularidade. Este prazo é interrompido por qualquer ato da autoridade competente de preparação ou instrução de procedimento por irregularidade, de que seja dado conhecimento ao beneficiário, recomeçando o prazo de prescrição a correr a contar de cada interrupção[10].
- Os montantes indevidamente recebidos por incumprimento das obrigações legais ou contratuais dos beneficiários de fundos europeus, pela ocorrência de qualquer irregularidade, bem como a inexistência ou a perda de qualquer requisito de concessão do apoio, constituem dívida das entidades que deles beneficiaram[11].
- Compete a cada Autoridade de Gestão o “poder-dever” de recuperar os montantes indevidamente pagos, juntamente com os eventuais juros de mora, contabilizados à taxa legal fixada nos termos do n.º 1 do artigo 559.º do Código Civil, desde o termo do prazo para pagamento voluntário até ao efetivo e integral reembolso do montante devido. Na falta de pagamento voluntário da dívida, a cobrança coerciva das dívidas é efetuada com recurso ao processo de execução fiscal, nos termos previstos no Código de Procedimento e de Processo Tributário, constituindo a certidão de dívida emitida título executivo para o efeito. Quando requerido, a entidade competente para a recuperação por reposição pode autorizar que a mesma seja efetuada em até ao máximo de 36 prestações mensais, quando requerido.
- Este poder dever traduz o exercício de um poder vinculado, que decorre de normas internas que concretizam imposições euro-comunitárias.
- De notar que, neste âmbito, os Estados-Membros e a Comissão têm uma responsabilidade partilhada em matéria de supervisão, controlo e auditoria e devem trabalhar em estreita colaboração para proteger os interesses financeiros da União e combater a fraude e a corrupção.
- Os próprios Estados-Membros estão sujeitos ao poder vinculado da Comissão Europeia de aplicar correções financeiras aos Estados-Membros, a fim de excluir do financiamento da União as despesas efetuadas em infração do direito aplicável, tendo em conta uma utilização proporcionada dos recursos administrativos[12].
- Por isso mesmo, as AG têm o dever legal de estabelecer procedimentos para que todos os documentos sobre a despesa e as auditorias sejam conservados, para garantir uma pista de auditoria adequada[13].
- Por sua vez, os beneficiários têm a obrigação de conservar os documentos relativos à realização da operação, sob a forma de documentos originais ou de cópias autenticadas, em suporte digital, quando legalmente admissível, ou em papel, durante o prazo de três anos, a contar da data do encerramento ou da aceitação da Comissão Europeia sobre a declaração de encerramento do PO ou do PDR, consoante a fase em que o encerramento da operação tenha sido incluído, ou pelo prazo fixado na legislação nacional aplicável ou na legislação específica em matéria de auxílios de Estado, se estas fixarem prazo superior[14].
Tendo em conta os riscos acrescidos de fraude na utilização de fundos comunitários no contexto do Portugal 2030 e do PRR que concretiza o plano de recuperação NextGenerationEU (NGEU), é expectável que as Autoridades de Gestão VENHAM A INTENSIFICAR OS SEUS PODERES DE CONTROLO INTERNO. E que os tribunais sejam chamados a sindicar o exercício desses poderes, como garantes últimos do Estado de DIREITO.
A União Europeia a isso apela: “Os Estados-Membros só podem assegurar uma boa gestão financeira se as autoridades públicas agirem em conformidade com a lei, se os casos de fraude, incluindo a fraude fiscal, de evasão fiscal, de corrupção e de conflito de interesses, ou outras violações do direito, forem efetivamente objeto de investigação e repressão pelos serviços de investigação e do Ministério Público, e se as decisões arbitrárias ou ilegais das autoridades públicas, inclusive das autoridades de aplicação da lei, puderem ser sujeitas a uma fiscalização jurisdicional efetiva por tribunais independentes e pelo Tribunal de Justiça da União Europeia”[15].
[1] Termo empregue pelo legislador para se referir ao ato administrativo que destrói os efeitos do ato de aprovação de candidatura e/ou de concessão de apoios, com fundamento no incumprimento das obrigações do beneficiário, bem como a inexistência ou a perda de qualquer dos requisitos de concessão do apoio (art. 23.º do Decreto-Lei n.º 159/2014, de 27.10, na sua redação atual (com as alterações por: Decreto-Lei n.º 215/2015; Decreto-Lei n.º 88/2018; Decreto-Lei n.º 127/2019; Decreto-Lei n.º 10- L/2020; Decreto-Lei n.º 109/2023).
[2] Cfr. Resolução do Parlamento Europeu, de 7 de julho de 2022, sobre a proteção dos interesses financeiros da União Europeia – luta contra a fraude – relatório anual de 2020, in https://www.europarl.europa.eu/doceo/document/TA-9-2022-0300_PT.html
[3] Cfr. Resolução do Parlamento Europeu, de 19 de janeiro de 2023, sobre a proteção dos interesses financeiros da União Europeia – luta contra a fraude – relatório anual de 2021, in https://www.europarl.europa.eu/doceo/document/TA-9-2023-0018_PT.html
[4] Cfr. art. 21.º do Decreto-Lei n.º 159/2014, de 27.10, na sua redação atual.
[5] Cfr. art. 24.º n.º 3 do Decreto-Lei n.º 159/2014, de 27.10, na sua redação atual.
[6] Cfr. art 25.º, n.º 8 a 10, do Decreto-Lei n.º 159/2014, de 27.10, na sua redação atual.
[7] A reposição pode dar-se por via de execução de garantias prestadas, por compensação ou reposição strcito sensu dos valores recebidos (art. 26.º, n.º 4, do Decreto-Lei n.º 159/2014, de 27.10, na sua redação atual.
[8] Cfr. art. 24.º, n.º 1, al. j) e k) do Decreto-Lei n.º 159/2014, de 27.10, na sua redação atual, e art. 21.º, 26.º, n.º 2 a), e art. 27.º, n.º 1 m), do Decreto-Lei n.º 137/2014, de 12.09, na sua redação atual (com as alterações introduzidas por: Decreto-Lei n.º 34/2018; Decreto-Lei n.º 127/2019; Lei n.º 12/2022).
[9] Em matéria de verificações administrativas a realizar pelas Autoridades de Gestão, cfr. nº 5 do artigo 125º do Regulamento (UE) nº 1303/2013, artigo 23º do Regulamento (UE) nº 1299/2013, bem como art. 25.º, n.º 8, do Decreto-Lei n.º 159/2014, de 27.10, na sua redação atual, e art. 26.º e 27.º do Decreto-Lei n.º 137/2014, de 12.09, na sua redação atual.
[10] cfr. art. 3.º do Regulamento (CE, Euratom) n.º 2988/95, de 18 de dezembro de 1995, relativo à proteção dos interesses financeiros das Comunidades Europeias (JO L 312, de 23.12.1995, p. 1).
[11] Cfr. art. 26.º n.º 1 do Decreto-Lei n.º 159/2014, de 27.10, na sua redação atual.
[12] Nos termos do artigo 144.º do Regulamento (UE) n.º 1303/2013 e do artigo 101.º, n.º 8, do Regulamento (UE, Euratom) 2018/1046 do Parlamento Europeu e do Conselho.
[13] Cfr. artigo 72.º , alínea g) do Regulamento (UE) nº 1303/2013, e art. 26.º, n.º 2 d), do Decreto-Lei n.º 137/2014, de 12.09, na sua redação atual.
[14] Cfr art. 24.º n.º 1 c) do Decreto-Lei n.º 159/2014, de 27.10, na sua redação atual.
[15] REGULAMENTO (UE, Euratom) 2020/2092, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de dezembro de 2020, relativo a um regime geral de condicionalidade para a proteção do orçamento da União (JO L 433, de 22.12.2020, p. I/1-10).
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