O recurso tutelar não se presume

O recurso tutelar não se presume

Num Estado de Direito, a Administração Pública encontra-se subordinada à Constituição e à lei, que funcionam concomitantemente como suporte e limite da sua atuação.

Assim, a competência “é definida por lei ou por regulamento e é irrenunciável e inalienável”, como dita o n.º 1 do art.º 36.º do Código do Procedimento Administrativo (CPA), pelo que, “antes de qualquer decisão, o órgão da Administração Pública deve certificar-se de que é competente para conhecer da questão.” (cf. n.º 1 do art.º 40.º do CPA).

Compete ao Governo, no exercício de funções administrativas, designadamente dirigir os serviços e a atividade da administração direta do Estado, superintender na administração indireta e exercer a tutela sobre esta e sobre a administração autónoma (cf. art.º 199.º, d) da Constituição da República).

Se na administração direta se estabelecem entre órgãos da mesma pessoa coletiva relações gerais de hierarquia, na administração indireta e autónoma, os poderes de tutela do Governo sobre órgãos de pessoas coletivas distintas, apresentam uma relação de especialidade.

Ora, enquanto o art.º 193.º do CPA dita que sempre que a lei não exclua tal possibilidade, pode utilizar-se o recurso hierárquico para reagir contra atos ou omissões de órgãos sujeitos aos poderes hierárquicos de outros órgãos, o inverso sucede no que respeita aos recursos administrativos especiais, que podem surgir no contexto das relações de superintendência e tutela.

Com efeito, no art.º 199.º do CPA, prevê-se que só há lugar a recurso administrativo especial para órgão de outra pessoa coletiva que exerça poderes de tutela ou superintendência, “nos casos expressamente previstos na lei” (cf. n.º 1.º, c) do art.º 199.º do CPA).

Neste sentido, dita o n.º 5 do art.º 169.º do CPA que “nos casos expressamente permitidos por lei, os atos administrativos praticados por órgãos sujeitos a superintendência ou tutela administrativa podem ser objeto de revogação ou de anulação administrativa pelos órgãos com poderes de superintendência ou tutela.

Note-se que no que respeita a outros recursos administrativos especiais, também só há lugar a recurso, seja para órgão que exerça poderes de supervisão, seja para órgão colegial, seja para órgão delegante, nos casos expressamente previstos na lei (cf. art.º 199.º, n.º 1, a) e b) e n.º 2 do CPA).

Há muito que a jurisprudência superior afirma que “a mera existência de relações de tutela não implica, de “per si”, que os atos da Entidade tutelada estejam sujeitos a recurso tutelar para a Entidade dotada de poderes de tutela. (…) Com efeito os poderes de tutela não se presumem, a sua extensão e conteúdo terão de resultar da lei.[1].

Também na doutrina, de um modo uniforme, vem sendo entendido que “quanto ao recurso tutelar, a regra fundamental é de que ele tem natureza excecional, só existindo quando a lei expressamente o previr (CPA, artigo 199.º, n.º 1). Por isso, não se pode extrair da existência de uma relação jurídica de tutela administrativa ou de superintendência, o corolário da existência de recurso tutelar: não é pelo simples facto de haver tutela administrativa ou superintendência que existe recurso tutelar. Para que haja recurso tutelar é preciso que, para além de uma relação geral de tutela ou de superintendência, esteja expressamente prevista na lei a própria possibilidade do recurso tutelar.”[2]

Não deve, contudo, tomar-se como habilitação legal de competência qualquer norma de procedimento que genericamente preceitue que do ato em causa caiba, a final, impugnação administrativa, por recurso tutelar.

Com efeito, as normas de procedimento não se confundem com as normas de competência e tais previsões legais apenas enunciam etapas procedimentais aplicáveis nos termos gerais.

Ora nos termos gerais, “os poderes de tutela não se presumem” e porque não existem poderes gerais de tutela, é imprescindível que tais concretos poderes resultem de lei expressa, conforme exigem os art.º 267.º, n.º 2 da Constituição da República e os art.º 169.º, n.º 5 e 199.º do Código do Procedimento Administrativo.

Tomando como exemplo, em particular, a Lei-Quadro dos Institutos Públicos, aprovada pela Lei n.º 3/2004, de 15 de janeiro, verificamos que não vêm ali consagrados genericamente poderes de tutela mas, ao invés, são elencados específicos poderes atribuídos ao membro do Governo competente, que não incluem o poder revogatório ou anulatório.

Mesmo no seu art.º 41.º, cuja epígrafe é precisamente “Tutela”, o n.º 9 apenas estipula que “o ministro da tutela goza de tutela substitutiva na prática de atos legalmente devidos, em caso de inércia grave do órgão responsável”, o que desde logo não ocorrerá em situações de impugnação de atos.

Determina por sua vez o n.º 5 do art.º 21.º da mesma lei-quadro que “os atos administrativos da autoria do conselho diretivo são impugnáveis junto dos tribunais administrativos, nos termos das leis do processo administrativo”, não fazendo qualquer alusão a recursos administrativos especiais.

A respeito dos recursos administrativos especiais, ensina J.D. Coimbra que “na realidade, a especialidade do recurso tutelar não é senão uma consequência derivada da especialidade das próprias competências tutelares: só existindo tutela nos casos expressamente previstos na lei, e nas modalidades concretamente definidas, daí resulta necessariamente que só possa haver lugar a recurso tutelar também apenas nos casos em que tal mecanismo se encontrar, em concreto, previsto (e previsto, como se viu, em lei formal) – e isto porque, como já se notou, a admissibilidade de recurso tutelar pressupõe logicamente a atribuição de competências supervisivas ou substitutivas do órgão ad quem sobre o órgão a quo. Logo, se estas só existem na medida e com a extensão tipificadamente prevista na lei, também assim o recurso tutelar só vale se e quando especificamente previsto na lei.[3]

Neste sentido, a falta de previsão legal expressa, nos diplomas conformadores da relação intersubjetiva de tutela que esteja em causa, de competências supervisivas e/ou substitutivas dos atos do órgão tutelado, obstará ao conhecimento, pelo membro do Governo que exerça a tutela, de qualquer recurso tutelar.

Diversamente, quando atribuída competência de supervisão ao membro do Governo, importa ainda ter presente que, nos termos do n.º 4 do art.º 199.º do CPA “no recurso tutelar, a modificação ou a substituição do ato recorrido ou omitido só é possível se a lei conferir poderes de tutela substitutiva e no âmbito destes”.

Acresce que nos termos do n.º 3 do mesmo artigo, o recurso tutelar “só pode ter por fundamento a inconveniência ou inoportunidade”, nos casos em que a lei estabeleça uma tutela de mérito, caso contrário, o órgão tutelar deverá cingir-se à apreciação da sua (des)conformidade legal.


[1] Cf. Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 29.01.1998, Proc. 043204, in www.dgsi.pt

[2] DIOGO FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo, Vol. II, Almedina, Coimbra, 4.ª Edição, reimpressão de 2021, p. 652.

[3] JOSÉ DUARTE COIMBRA, “Os recursos administrativos especiais”, in Revista de Direito Administrativo – n.º12 (Set.-Dez. 2021) – p.19-37.