A figura da perda de chance, e respetivas consequências indemnizatórias, tem sido amplamente discutida entre nós, tanto pela doutrina como pela jurisprudência, no âmbito do Direito Privado como no do Direito Público.
Em termos simples, as situações de perda de chance costumam ser definidas como aquelas em que ocorre a perda da possibilidade de obter uma vantagem (ou resultado favorável) ou de evitar um prejuízo (ou um resultado desfavorável), sem que seja possível apurar se essa vantagem teria realmente sido obtida ou se o prejuízo teria sido evitado[1], caso não tivesse ocorrido o facto invocado, com as consequentes dúvidas em termos de tutela indemnizatória.
Com este enquadramento, é natural que um dos campos em que a discussão a este respeito se tenha revelado fértil seja o dos procedimentos concursais, uma vez que são habituais as situações em que é necessário apurar se determinado concorrente que foi ilegalmente preterido tem ou não direito a ser indemnizado quando, após a decisão judicial favorável, já não seja possível retomar o procedimento concursal, designadamente por já ter sido celebrado e/ou executado o ato ou contrato que era objeto desse procedimento.
Porque nesses casos o concorrente ficou afastado da possibilidade de discutir a adjudicação, poder-se-á estar perante uma situação paradigmática de incerteza associada à perda de chance, que origina, então, a necessária discussão sobre a eventual tutela indemnizatória que lhe poderá assistir, em função da probabilidade que teria ou não de obter aquela adjudicação.
Como se disse, este tema tem sido, ao longo dos tempos, objeto de diversas decisões judiciais (neste caso, estando em causa sobretudo a jurisdição administrativa), assumindo, neste contexto, particular interesse o recente Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 12 de outubro de 2023.
Neste Acórdão, o Supremo Tribunal Administrativo (“STA”) procedeu a um enquadramento da jurisprudência que se tem vindo a formar sobre diversas questões paradigmáticas relativas à perda de chance em procedimentos concursais (e, em particular, na contratação pública) e procurou ele próprio sedimentar alguns entendimentos, pelo que é interessante conhecer o que aí foi analisado e decidido.
Desde logo, pode dizer-se, em termos gerais, que foram analisadas quatro questões relevantes nesta matéria:
- A ressarcibilidade do dano “perda de chance”;
- A natureza jurídica da indemnização a conceder;
- Requisitos de verificação de uma situação de perda de chance suscetível de originar um direito indemnizatório;
- Quantificação do dano de perda de chance.
1. No que respeita à primeira questão, é sabido que é discutida a própria ressarcibilidade da “perda de chance” e que existem posições que rejeitam que possa sequer existir um dano indemnizável, designadamente por se entender que não estariam verificados os requisitos da responsabilidade civil, como seja o nexo de causalidade e o próprio dano.
No entanto, neste Acórdão, o STA afasta-se dessa posição e, reconhecendo o que já é jurisprudência relativamente estável desse Tribunal, afirma que a perda de chance “é um bem em si mesmo, um valor autónomo e atual, distinto da utilidade final que potencia” e, por isso, “não é uma mera expetativa, mas um dano certo e causalmente ligado à conduta da Administração”, cuja perda dá lugar a um “dever objetivo de indemnizar”. Ficou assim, mais uma vez afirmado que, no entender do STA, o dano decorrente da perda de chance no âmbito de procedimentos concursais constitui um dano indemnizável, desde que verificados os respetivos pressupostos[2].
2. Relacionado com esta questão, o STA reafirmou também o seu entendimento, já manifestado em vários acórdãos anteriores, sobre a natureza da indemnização por perda de chance.
Assim, foi afirmado de forma clara que se considera “pacífico o entendimento deste Supremo Tribunal quanto à inclusão do dano pela frustração da possibilidade de vir a ganhar o concurso no âmbito dos danos causados pela inexecução do julgado (artigo 178.º do CPTA)”. O que, por sua vez, implica a constatação pelo STA de que está em causa uma situação de responsabilidade por ato lícito, com as consequências associadas.
Esta construção acaba por ser uma consequência natural da circunstância de os pedidos indemnizatórios que são analisados pelos tribunais administrativos surgirem geralmente na sequência de uma sentença de anulação de um ato praticado num procedimento concursal (tipicamente um ato de adjudicação, mas poderá ser outro) e perante a constatação de que tal sentença não pode ser executada por o concurso estar já terminado ou o contrato executado.
Uma vez que existe aí uma causa legítima de inexecução da sentença anulatória, a pretensão indemnizatória surge normalmente nesse momento, em que se tem de apurar se o concorrente preterido, que conseguiu obter a anulação do ato em causa, deve ser indemnizado por não ser possível executar essa mesma decisão judicial. Assim sendo, é habitual que a mesma venha a ser considerada e enquadrada pelo STA ao abrigo do artigo 178.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (“CPTA”), que visa precisamente enquadrar pretensões desse género, nascidas da impossibilidade de executar uma sentença por um causa legítima (e, portanto, por um motivo lícito).
Claro está, no entanto, que esta qualificação, embora “pacífica” na jurisprudência do STA, pode suscitar algumas dúvidas ou dificuldades, já que, entre outras que se poderia referir, pode introduzir uma diferença de tratamento face a outros casos de indemnização por perda de chance (como seja, por exemplo, a perda de chance processual), que são qualificados como responsabilidade por ato ilícito, ou conduzir a uma limitação dos montantes indemnizatórios a atribuir, quando comparados com essas outras modalidades de responsabilidade civil.
3. No que respeita à questão fundamental de saber em que casos terá o concorrente preterido direito a uma indemnização por perda de chance, o STA, no Acórdão em análise, pronuncia-se sobre ela na perspetiva da “probabilidade séria de ganhar o concurso”.
Isto é, o que importa aferir é a “seriedade da chance perdida”, apenas podendo ser indemnizados os concorrentes que, não fora o ato ilegal praticado, teriam uma probabilidade séria de ganhar o concurso, o que, naturalmente, conforme refere o STA, se trata de uma análise que “deve ser aferida em concreto, ou seja, perante os termos e condições do concurso e a valia da proposta da Autora em confronto com as demais”.
Em termos simples, em discussão neste Acórdão estava um ato de adjudicação para atribuição de uma licença de dragagens de manutenção na barra e no anteporto da Figueira da Foz. O concorrente que ficou em segundo lugar impugnou, com sucesso, esse ato, invocando ilegalidades na avaliação das propostas, tendo ocorrido a anulação sobretudo porque, na referida avaliação, terá sido tomado em consideração um critério que não estava previsto nos documentos concursais.
Uma vez que não foi possível executar a sentença de anulação, “por entretanto o contrato assente no ato de adjudicação já se mostrar integralmente executado”, foi então intentada ação de responsabilidade civil pelos danos sofridos pelo concorrente preterido, que veio a dar origem ao Acórdão em análise.
Ora, o que o STA constatou foi que as duas propostas a concurso tinham sido avaliadas através de três fatores e que a proposta da Exequente tinha obtido melhor pontuação num deles, tinha empatado no outro e tinha ficado atrás no terceiro, sendo que foi a avaliação relativa a este último que foi julgada ilegal, resultando da fundamentação apresentada pelo júri do concurso que, se não tivesse sido o aspeto ilegalmente apreciado, era provável que a proposta da Autora tivesse sido mais bem avaliada do que a do adjudicatário.
O que levou, então, o STA a concluir que “em concreto a proposta da Autora tinha uma probabilidade séria de ganhar o concurso, uma vez que a causa eficiente da diferença de pontuação da proposta vencedora foi tida por ilegal, e nos outros dois fatores tinha maior pontuação num deles e idêntica noutra”, tendo mesmo quantificado em 60% essa probabilidade de sucesso (corrigindo a apreciação da decisão recorrida, que a tinha fixado em 50%)[3].
Resulta daqui que, em função da análise do caso concreto, o STA conseguiu determinar que, não fora a ilegalidade cometida, o concorrente preterido teria uma probabilidade de sucesso de 60%, e que esta constituía, então, uma “probabilidade séria” de ganhar o concurso, sendo suficiente para lhe atribuir o direito a uma indemnização por perda de chance[4].
4. Com o que se chega ao último ponto em análise no Acórdão, que corresponde ao critério seguido pelo STA para quantificar essa indemnização e que, por motivos óbvios, constitui também um dos aspetos mais importantes a considerar nesta matéria.
O Supremo ponderou este ponto com alguma detenção, salientando a dificuldade de encontrar um critério adequado, questionando-se, “uma vez que a execução do julgado poderia terminar com a não adjudicação do contrato ao exequente, como quantificar esse dano cuja verificação é, bem vistas as coisas, incerta?”.
Depois de percorrer diversas decisões anteriores, esclarece-se, na sequência da posição defendida por Mário Aroso de Almeida, que “quando se demonstra uma probabilidade séria de ganhar o concurso e impossibilidade de executar o julgado anulatório, a atribuição de uma indemnização (apesar da incerteza) decorre da transferência do risco da frustração da proposta para a entidade adjudicante. Transferência do risco que se justifica porque (i) a entidade adjudicante praticou um ato ilegal (anulado); (ii) se tornou impossível cumprir o julgado, por motivo não imputável ao exequente; (iii) embora não tenha provado que efetivamente o ganharia, o exequente demonstrou probabilidade séria de ganhar o concurso”.
Assim, e afastando-se do critério que é proposto por alguma doutrina e jurisprudência (administrativa e também nos tribunais civis), este Acórdão considerou que o dano pela perda de chance nos procedimentos concursais não é “um dano recortado matematicamente em função do lucro expectável conjugado com a percentagem de êxito quanto ao desfecho do concurso, mas antes um valor encontrado equitativamente e fixado a partir das concretas situações do caso”.
O STA recusou-se, assim, a quantificar a indemnização devida ao lesado pela aplicação da percentagem de 60% de probabilidades de ganhar o concurso ao lucro esperado por aquele e que não foi alcançado.
Desta forma, recorrendo a um juízo equitativo, que não simplesmente “matemático”, o STA entendeu que “tendo em conta (i) os valores envolvidos e a expetativa de lucro no valor de € 1.080.000,00 (…); (ii) a real possibilidade de ganhar o concurso, (iii) sendo certo também que tal poderia não ocorrer, e que, por outro lado, (iv) a Autora teve possibilidade de usar o equipamento de dragagem (como se provou nos pontos 31, 32, 33 e 34) e, desse modo obter os respetivos lucros, o montante atribuído pelo acórdão recorrido de €100.000,00 (cem mil euros) é, a nosso ver, adequado e justo”.
Verifica-se, por conseguinte, que foi atribuída uma indemnização de cem mil euros, relevando na determinação deste montante, por um lado, a incerteza existente sobre se a adjudicação teria ou não sido alcançada, não fora a ilegalidade, e também os benefícios que o lesado auferiu, entretanto, por não ter tido de executar o contrato em causa (designadamente, a utilização dos equipamentos que teriam sido afetos a essa execução).
Considerando a natureza controversa de muitos dos temas analisados e decididos neste Acórdão, é possível que o entendimento nele vertido não encerre a discussão sobre esta matéria, até porque existem outros acórdãos anteriores que seguiram caminhos diferentes.
Justifica-se, por isso, continuar a acompanhar a evolução da jurisprudência administrativa a este respeito, o que permitirá igualmente perceber se o Acórdão agora analisado irá ou não influenciar as decisões dos tribunais administrativos no futuro próximo.
[1] Neste sentido, vd. Paulo Mota Pinto, “Perda de chance processual”, in “Revista de Direito Civil Contemporâneo”, vol 15, ano 5, São Paulo, abril-junho de 2018, pág. 346. A este propósito, veja-se igualmente, entre muitos outros, Rui Cardona Ferreira, “Indemnização do interesse contratual positivo e perda de chance (em especial, na contratação pública)”, Coimbra Editora, Coimbra, 2011, págs. 91 e segs., ou Pedro Fernández Sánchez, “A tutela ressarcitória no Direito dos Contratos Públicos: interesse contratual positivo ou negativo e perda de chance”, in “O Direito”, 147.º (2015), IV, págs. 863 e segs..
[2] Na fundamentação desta decisão, vem transcrito o Acórdão de 20.11.2012, proferido no processo n.º 0949/2012, no qual o STA explicou esta sua posição e invocou outros Acórdãos no mesmo sentido.
[3] Como consta do Acórdão, “a proporção de ganhar o concurso era séria, mostrando-se a proporção de cerca de 50% fixada no acórdão recorrido inferior à que julgamos adequada”, isto porque “no único fator em que a proposta da Autora ficou aquém da vencedora (nos outros dois, num deles ganhou e no outro empatou) a mesma mostrava-se, como reconheceu o júri, com maior capacidade de intervenção… Deste modo julgamos que a proporção mais adequada sobre a possibilidade de ganhar o concurso seria de, pelo menos, 60% (…)”.
[4] Na verdade, mesmo uma probabilidade de 50% foi considerada suficiente para esse efeito, pelo Tribunal Central Administrativo Norte, no Acórdão recorrido.