Estafetas e presunção de contrato de trabalho: os primeiros passos dos tribunais superiores

Estafetas e presunção de contrato de trabalho: os primeiros passos dos tribunais superiores

1. Entre as diversas alterações introduzidas no Código do Trabalho, pela denominada Agenda do Trabalho Digno (Lei n.º 13/2023, de 3 de abril), consta a da presunção do contrato de trabalho no âmbito de plataforma digital (artigo 12.º-A).

Trata-se de um artigo longo – tem 12 números – e tecnicamente deficiente, que teve como desiderato facilitar a qualificação dos contratos entre o prestador de atividade e a plataforma digital, rectius, o proprietário desta.

2. O legislador entendeu antecipar-se ao instrumento comunitário que estava em curso e foi, entretanto, aprovado (Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho relativa à melhoria das condições de trabalho em plataformas digitais), aguardando por publicação. Este instrumento “… visa melhorar as condições de trabalho dos trabalhadores de plataformas digitais e salvaguardar os dados pessoais das pessoas que trabalham em plataformas digitais” (considerando 16); acrescentando-se ainda, mais concretamente sobre a questão em análise, que “… os Estados-Membros deverão definir medidas que prevejam uma facilitação processual efetiva para as pessoas que trabalham em plataformas digitais ao determinar o seu estatuto profissional correto. Neste contexto, uma presunção legal de uma relação de trabalho a favor das pessoas que trabalham em plataformas digitais é um instrumento eficaz que contribui significativamente para a melhoria das condições de vida e de trabalho dos trabalhadores de plataformas digitais. Por conseguinte, deverá presumir-se juridicamente que uma relação contratual é uma relação de trabalho, tal como definida pelo direito, por convenções coletivas ou pelas práticas em vigor nos Estados-Membros, tendo em conta a jurisprudência do Tribunal de Justiça, sempre que se verifiquem factos indicativos da direção e do controlo” (considerando 30); bem como que “uma presunção legal eficaz exige que o direito nacional torne efetivamente mais fácil para as pessoas que trabalham em plataformas digitais beneficiarem da presunção. Os requisitos da presunção legal não deverão ser onerosos e deverão diminuir as dificuldades que as pessoas que trabalham em plataformas digitais possam ter em apresentar elementos de prova que indiquem a existência de uma relação de trabalho numa situação em que se verifica um desequilíbrio de poder face à plataforma de trabalho digital. O objetivo da presunção legal é resolver e corrigir eficazmente o desequilíbrio de poder entre as pessoas que trabalham em plataformas digitais e as plataformas de trabalho digitais” (considerando 31).

Com base no exposto, a Diretiva estabelece uma presunção legal, segundo a qual “a relação contratual entre uma plataforma de trabalho digital e uma pessoa que trabalha em plataformas digitais através dessa plataforma é legalmente presumida como uma relação de trabalho quando se verificarem factos que indiciem a direção e o controlo, nos termos do direito nacional, das convenções coletivas ou das práticas em vigor nos Estados-Membros e tendo em conta a jurisprudência do Tribunal de Justiça. Se a plataforma de trabalho digital pretender ilidir a presunção legal, cabe à plataforma de trabalho digital provar que a relação contratual em causa não constitui uma relação de trabalho, tal como definida pelo direito, por convenções coletivas ou pelas práticas em vigor nos Estados-Membros, tendo em conta a jurisprudência do Tribunal de Justiça” (artigo 5.º, n.º 1).

3. Regressando ao Código do Trabalho, o legislador estabeleceu que, sem prejuízo da presunção (geral) de contrato de trabalho já existente (artigo 12.º), presume-se a existência de um contrato de trabalho entre o prestador de atividade e a plataforma digital, quando se verifiquem algumas das seguintes caraterísticas:

“a) A plataforma digital fixa a retribuição para o trabalho efetuado na plataforma ou estabelece limites máximos e mínimos para aquela;

b) A plataforma digital exerce o poder de direção e determina regras específicas, nomeadamente quanto à forma de apresentação do prestador de atividade, à sua conduta perante o utilizador do serviço ou à prestação da atividade;

c) A plataforma digital controla e supervisiona a prestação da atividade, incluindo em tempo real, ou verifica a qualidade da atividade prestada, nomeadamente através de meios eletrónicos ou de gestão algorítmica;

d) A plataforma digital restringe a autonomia do prestador de atividade quanto à organização do trabalho, especialmente quanto à escolha do horário de trabalho ou dos períodos de ausência, à possibilidade de aceitar ou recusar tarefas, à utilização de subcontratados ou substitutos, através da aplicação de sanções, à escolha dos clientes ou de prestar atividade a terceiros via plataforma;

e) A plataforma digital exerce poderes laborais sobre o prestador de atividade, nomeadamente o poder disciplinar, incluindo a exclusão de futuras atividades na plataforma através de desativação da conta;

f) Os equipamentos e instrumentos de trabalho utilizados pertencem à plataforma digital ou são por esta explorados através de contrato de locação” (artigo 12.º-A, n.º 1).

Esta presunção – que pode ser ilidida (artigo 12.º-A, n.º 4) – não é, como acima referimos, tecnicamente correta[1], como decorre, por exemplo, do facto considerar um indício a existência do poder de direção por parte da plataforma (artigo 12.º-A, n.º 1, alínea b)), uma vez que ocorrendo este já estaremos no âmbito do contrato de trabalho; temos, portanto, uma confusão entre presunção e presumido. Resta saber, face aos diversos erros, se a presunção legal cumpre efetivamente os objectivos da Diretiva …

4. Em diversos países foram surgindo ações com o intuito de o prestador da atividade ver reconhecida a existência de um contrato de trabalho[2].

Entre nós, surgiu, entretanto, uma decisão de um tribunal superior, mais precisamente da Relação de Évora, de 12 de setembro, de 2024 (processo n.º 3842/23).

Neste aresto, sustentou-se, como consta do seu (claro) sumário:

“Mostra-se ilidida a presunção, não sendo de considerar a existência de um contrato de trabalho entre cada um dos prestadores da atividade/estafeta e a plataforma digital, no circunstancialismo fáctico em que se apura, no essencial, que:

(i) o estafeta pode aceitar, não responder, ou rejeitar o serviço proposto;

(ii) essa rejeição pode verificar-se mesmo após o estafeta já ter aceitado o serviço proposto, sem que tal afete o estatuto da sua conta na aplicação, a apresentação de futuros serviços e o preço de tais futuros serviços;

(iii) após a aceitação do serviço, os estafetas podem permitir ou não que a plataforma tenha acesso à sua localização, sem que isso tenha impacto na realização do serviço ou leve a alguma penalização;

(iv) são eles que, após a aceitação do serviço, escolhem o meio de transporte utlizado, definem o percurso a seguir, podendo desligar a geolocalização do telemóvel;

(v) os estafetas, uma vez por dia, podem alterar um multiplicar que permite aumentar o valor total recebido por cada serviço;

(vi) os estafetas escolhem os dias e horas que pretendem ligar-se à aplicação da ré;

(vii) os estafetas podem subcontratar outro prestador de serviços de entrega”[3].

5. Menos de um mês depois, dois novos acórdãos, desta vez da Relação de Guimarães, ambos datados de 3 de outubro, que reconheceram a existência de contrato do trabalho, ainda que seguindo caminhos diferentes.

Sobre o primeiro aresto (processo n.º 2800/23), foi sumariado o seguinte:

“I- Verificando-se as caraterísticas previstas nas alíneas a), b) e e) (esta identificada na decisão recorrida) do n.º 1 do art.º 12-A do CT, está assim preenchida a presunção de existência do contrato de trabalho, sem prejuízo de poder vir a ser ilidida.

II-O estafeta presta a sua atividade de entrega e recolha de mercadorias, para uma organização produtiva que não é sua, mas sim da empresa que gere a plataforma, já que a partir do momento em que se liga à plataforma ele passa a integrar um serviço por ela organizado que não se limita a encomendar a recolha e a entrega da mercadoria, mas estabelece a forma como o deve fazer, controlando diversos aspetos através da aplicação, decidindo quanto ao preço, a forma de pagamento e a taxa de entrega, nada recebendo o estafeta, em regra, do cliente, ficando o processo de faturação a cargo da plataforma.

III – O estafeta está sujeito a diversas formas de controlo e de avaliação algorítmica por parte da plataforma, o que não pode deixar de ser considerado uma manifestação do poder de direção e disciplinar que a empresa que gere a plataforma exerce para com o AA, o que evidência, sem margem para dúvida, a dependência própria da relação laboral, que a Ré não logrou ilidir”.

6. Relativamente ao segundo (processo n.º 2838/23), pode ler-se:

 “I – Ao caso não é aplicável a presunção de laboralidade em trabalho suportado em plataforma digital – Lei 13/2023, de 3 de abril.

II – O traço característico do contrato de trabalho é a subordinação jurídica, actualmente entendida como a sujeição da actividade prestada pelo trabalhador a parâmetros importantes ditados pelo empregador, que assim gere e conforma a execução do trabalho. O trabalhador não exerce actividade segundo a sua própria organização, mas sim inserido num ciclo produtivo de trabalho alheio e em proveito de outrem.

III – O peso e a valoração dos diversos indicadores de laboralidade variam e devem ser sopesados em função do quadro específico e do modo como se organiza a actividade em causa.

IV – A revolução digital, a inteligência artificial, a automação, e em especial a actividade prestada em plataforma digital, transformaram as relações e a forma de organizar de trabalho. O distanciamento destas realidades relativamente aos modelos clássicos demanda uma abordagem diferente da tradicional na distinção entre trabalho autónomo e trabalho dependente.

V – Nessa perspectiva, a ausência de certos indícios tradicionais não é incompatível com o reconhecimento do vínculo laboral, mormente horário e local de trabalho, exclusividade e instrumentos de trabalho que se afigurem subalternizados.

VI – A ré EMP01… não é uma mera intermediária tecnológica, mas sim uma empresa que através de plataforma digital explora um negócio de recolha e entrega de mercadorias edita as condições essenciais da sua execução, mormente cria e organiza o sistema de processamento do serviço. Os clientes são seus e é a ré a fixar as condições e os critérios que mais determinam o preço.

VII – O essencial do circuito produtivo está padronizado e centralizado na ré EMP01…através da gestão da plataforma informática, onde se processam as transações (compras e vendas), onde a ré distribui as entregas de mercadorias pelos estafetas com recurso ao uso de GPS da App, onde se insere o preço/taxa das entregas, etc.

VIII – A infraestrutura essencial da actividade em causa é o software gerido pela ré, sem a qual o negócio não se processaria. A propriedade do smartphone, motorizada e mochila por parte dos estafetas é acessória e secundária.

IX – A ampla possibilidade que a ré EMP01… tem de desligar o estafeta do acesso à App caso este deixe “de cumprir ou atingir os requisitos destes Termos” representa o exercício de um poder sancionatório, atenta a sua amplitude e consequências (deixa de receber pedidos de entregas, leia-se suspensão/cessação da actividade).

X – Constitui indicador de laboralidade o facto de os critérios essenciais de determinação da retribuição serem fixados pelo beneficiário da actividade.

XI – É meramente aparente a possibilidade de o “estafeta” se fazer substituir, quando tem de o fazer em outro “estafeta “com conta activa” na plataforma eletrónica da ré, não sendo este um terceiro ao já fazer parte da «pool» da ré.

XII – O modo de contratação nas plataformas digitais, que implica aceitação automática, sem negociação, de contratos de adesão completamente padronizados, repletos de cláusulas extensas e herméticas, demonstrando uma supremacia de partes, não se adequa ao conceito de trabalho autónomo, que por principio pressupõe negociação paritária”[4].

7. Não sendo este o local para uma análise do regime legal, nem dos arestos, sempre diremos, com as palavras de Romano Martinez, que o artigo 12.º-A “… foi uma oportunidade perdida de regular uma questão de grande interesse prático. O preceito em análise, com enorme défice jurídico, só regula uma questão relacionada com o trabalho digital (nas chamadas plataformas), não abrangendo o teletrabalho, com relevo para os nómadas digitais. Ficou por ponderar o facto de, não raras vezes, os trabalhadores digitais carecerem sobretudo de uma proteção jurídica, não estritamente laboral, eventualmente mais bem integrados na categoria de trabalhadores com dependência económica”[5].


[1] Vejam-se as críticas de Romano Martinez, Direito do Trabalho, 11.ª edição, Almedina, Coimbra, 2023, pp. 319-320.

[2] Para uma análise de diversos arestos, Leal Amado e Teresa Coelho Moreira, “Plataformas digitais, qualificação do contrato e substituição de estafetas: a «bala de prata»?”, Revista Internacional de Direito do Trabalho, n.º 6, 2024, pp. 138 e ss, disponível em https://idt.fdulisboa.pt.

[3] Para uma análise crítica, Leal Amado e Teresa Coelho Moreira, “As Plataformas digitais, a presunção de laboralidade e a respetiva ilisão: nótulas obre o Acórdão da Relação de Évora, de 12/09/2024”, Observatório Almedina, outubro, 2024, disponível em https://observatorio.almedina.net.

[4] Para uma análise, Leal Amado e Teresa Coelho Moreira, “Plataformas digitais e estafetas: a saga continua!”, Observatório Almedina, outubro, 2024, disponível em https://observatorio.almedina.net

[5] Romano Martinez, Direito do Trabalho, cit., p. 320.

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